O bolo-rei continua a marcar presença na ceia de Natal portuguesa, mas a sua centralidade simbólica e gastronómica pode estar a enfraquecer. Mais de um século depois de se ter imposto como o grande doce desta época, há sinais claros de afastamento por parte de várias gerações, sobretudo das mais novas, o que levanta a possibilidade de uma transformação silenciosa na tradição natalícia.
Presença quase obrigatória, consumo cada vez menor
De acordo com João Pedro Gomes, investigador da história da doçaria portuguesa e docente na Escola Superior de Educação de Coimbra, a relação dos portugueses com o bolo-rei está a mudar. Num exercício recorrente com os seus alunos, poucos admitem gostar do doce, embora praticamente todos garantam que ele estará presente na mesa da Consoada.
A contradição resume o fenómeno: o bolo-rei mantém-se por hábito, não por apetite. Segundo a Executive Digest, site especializado em negócios e atualidade, esta dissociação entre presença e consumo também se nota em faixas etárias mais elevadas, incluindo pessoas entre os 50 e os 60 anos.
Durante as festas, o bolo-rei é muitas vezes deixado para segundo plano, ultrapassado por rabanadas, filhoses, sonhos, arroz-doce ou leite-creme. Não é raro que só seja cortado dias depois, já fora do contexto da ceia. A sua função aproxima-se mais de elemento ritual do que de protagonista gastronómico.
Um doce com rosto conhecido
Tal como refere a mesma fonte, o humorista Ricardo Araújo Pereira já tinha notado, há alguns anos, esta presença quase obrigatória mesmo entre quem não aprecia o doce. O bolo-rei pode ficar intacto, mas a sua ausência gera desconforto. É essa carga simbólica que continua a sustentá-lo.
Para Arnaldo Baptista, fundador da Associação de Doceiros de Coimbra e responsável pelas pastelarias Vasco da Gama, o bolo-rei continua a ser o centro da mesa natalícia. Reconhece que há maior procura por alternativas como bolo-rainha, escangalhado, tranças ou panetone, mas os volumes não se comparam. O bolo-rei transporta uma tradição que outras criações não replicam.
Mais de 100 anos de história
Introduzido em Portugal na década de 1870 pela Confeitaria Nacional, em Lisboa, o bolo-rei foi inspirado na galette des rois do sul de França e rapidamente ganhou notoriedade. Nos anos 30 do século XX, já estava disseminado por todo o país, tornando-se a última grande transformação da ceia de Natal portuguesa. Antes da sua chegada, a mesa era dominada por fritos doces, frutos secos e pelo bacalhau com couves, prato associado aos períodos de abstinência.
Hoje, a própria natureza do bolo cria desafios. A massa densa e as frutas cristalizadas afastam consumidores, sobretudo quando o produto é industrial. Um bolo-rei artesanal exige tempo, técnica e encarece o preço final, enquanto muitas versões comerciais recorrem a preparados e listas extensas de ingredientes.
O futuro do rei
Apesar deste contexto, não há ainda sinais claros de quebra nas vendas. Segundo a Executive Digest, a tradição continua a impor-se, mas poderá estar a adaptar-se. O crescimento de variantes sem fruta cristalizada e a popularidade crescente do panetone italiano, mais leve e acessível, aponta para um Natal diferente no futuro. O bolo-rei não deverá desaparecer, mas transformar-se, assumindo sobretudo um papel decorativo e simbólico, mais centro de mesa do que doce desejado.
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