O romance tem como fio condutor os encontros e desencontros de duas famílias de classes distintas. Quando Francisco d’Almeida Lobo decide passar a viver a tempo inteiro no Monte do Azinhal para cuidar pessoalmente da propriedade, ignora que a presença da família Velho no Montinho lhe vai criar tensões impossíveis de ultrapassar. Primeiro, porque Jacinto Velho se recusa a trabalhar para ele, preferindo viver com dificuldades do que ser servo. E depois porque a mulher dele é Maria Barnabé. Ainda que no início do romance, não seja clara a relação entre ambos, pois Francisco Lobo parece procurá-la pelo simples prazer de conversar com ela, a tensão sexual será crescente, com o desejo desmedido do senhor da terra por Maria.
Maria Barnabé é a grande personagem do romance, ainda que algum leitor possa não concordar, e o autor se esquive a perspetivá-la como figura central. Na verdade, ao longo de todo o livro, sabemos muito pouco sobre os seus desejos ou pensamentos íntimos. Em contrapartida ela parece capaz de saber tudo sobre os outros, como uma Blimunda que vê por dentro das pessoas. Percepcionamo-la sobretudo pelas suas acções, que vão sempre ao encontro de manter a casa de pé e a família unida e íntegra. Família essa que partilha de traços que se podem considerar pouco comuns entre camponeses: cabelo claro, olhos verdejantes rasgados. O seu isolamento e espírito indómito valer-lhes-á a alcunha de bichos, selvagens e primitivos (há inclusivamente um episódio de incesto que pode corroborar a estranheza dos Velho).
Uma personagem singular que não só evoca a força feminina tão característica às obras de Saramago, como tão bem representa o misticismo e a magia. Pode-se aliás considerar que o realismo mágico, já presente num romance anterior do autor, Os Demónios de Álvaro Cobra, irrompe aqui particularmente centrado nesta personagem. Entenda-se por realismo mágico a irrupção de um certo maravilhoso, nomeadamente pagão, em torno de Maria Barnabé. É a ela que as pessoas recorrem para mezinhas, decifração de sonhos, endireitar ossos, e inclusivamente orações. Em alguns momentos fugazes, podemos mesmo constatar como Maria consegue até entrever a alma das pessoas, lendo-lhes os pensamentos.
Os sonhos são aliás uma constante ao longo do romance e servem, não só como avisos, mas também enquanto irrupções de desejos reprimidos, como acontece com Lourdes. Manifestações que inclusivamente orientam mesmo a acção das personagens, desafiando convenções sociais.
A escrita é a um tempo tão distante quanto familiar, mesmo recorrendo aos regionalismos e a um registo narrativo mais arcaico, próximo do oral, narrando num ritmo rápido várias décadas destas famílias, conforme as personagens entram e saem de cena.
O tempo e o espaço são indefinidos, embora, ao conhecer a obra do escritor, e ao atentar nos regionalismos que veiculam a prosa, se possa pensar de imediato no Alentejo profundo de inícios do século XX. É apenas quando já estamos avançados na leitura que encontraremos referências, esporádicas, ao tempo histórico, nomeadamente aos ecos distantes da guerra. A cada capítulo corresponde um ligeiro salto cronológico e na acção, ainda que reine essa ominosa sensação de um tempo suspenso, “parado por entre as azinheiras” (pág. 233). Ainda sobre o ambiente mágico, este parece palpitar na própria paisagem. Há até momentos em que o estado de espírito das personagens parece mudar o clima e o ambiente em seu redor: “No Montinho havia uma paz estranha, pois, sem Jacinto ter rebentado a sua fúria contra a filha e a mulher, esta podia ver-se suspensa na atmosfera da casa, pairando sobre os objectos e as cabeças de todos.” (pág. 175)
No último capítulo do livro, embora tenha havido um momento fugaz logo no início, percebemos como esta história é, afinal, a reconstrução da memória de um Sebastião, que ao longo do romance é descrito como uma criança com um atraso mental, capaz de falar sozinho e brincar com a sua azinheira, mas agora, aos sessenta anos, é ele quem desfia a memória dos eventos passados com a sua família, no seu regresso a casa. Um final que confirma a ominosa sensação de solidão, de que as epígrafes no início do romance davam conta. Não a solidão prazenteira de Sebastião, que parece estar em paz com a vida, mas sobretudo a das várias personagens cujos sonhos e amores foram soçobrando pelo caminho.
Carlos Campaniço nasceu em Safara, no concelho de Moura. Os seus romances de época têm-se centrado nas comunidades e vivências rurais alentejanas do século passado e no seu imaginário colectivo. Publicou Molinos, 2007 (romance); Da Serra de Tavira ao Rif Marroquino. Analogias e Mitos, 2008 (ensaio); A Ilha das Duas Primaveras, 2009 (romance); Os Demónios de Álvaro Cobra, 2013 (romance, Prémio Nacional Cidade de Almada 2012); Mal Nascer, 2014 (romance finalista do Prémio LeYa e Vencedor do Prémio Mais Literatura da revista Mais Alentejo, 2014); As Viúvas de Dom Rufia, 2016 (romance).