O edifício onde está o Teatro Lethes começou por ser um colégio de Jesuítas designado por Colégio de Santiago Maior, fundado pelo então Bispo do Algarve, D. Fernando Martins Mascarenhas. Este local de aprendizagem, sobretudo de matriz religiosa, teve licença de utilização a partir de 8 de Fevereiro de 1599.
Em 1759, a Companhia de Jesus foi banida do país e foram confiscados os seus bens. O Colégio de Santiago Maior encerrou assim as suas portas. Com a ocupação das tropas napoleónicas comandadas pelo General Junot, as instalações do antigo Colégio foram devassadas e profanadas para aí se alojarem os soldados.
Anos mais tarde, em 1843, o Colégio foi arrematado em hasta pública pelo Dr. Lázaro Doglioni (médico e mecenas veneziano que se radicou em Faro no séc. XIX) que manifestara publicamente intenção de construir em Faro um teatro à semelhança do S. Carlos, de Lisboa e do “La Scalla”, de Milão.
A inscrição latina na fachada do edifício, monet oblectando, poderá ser traduzida por “instruir, divertindo”, salientando assim as preocupações culturais do promotor desta sala de espectáculos.
A inauguração do Teatro Lethes realizou-se a 4 de Abril de 1845, associando-se às comemorações do aniversário da Rainha D. Maria II. Mais tarde, em 1860, foi ampliado pelo Dr. Justino Cúmano, médico tal como o seu tio Lázaro Doglioni.
Na conversa tida com o actor e encenador Luís Vicente no Teatro Lethes, foram destacados alguns aspectos sobre a mística do Teatro Lethes como um lugar de devoção, educação, tragédia, amor, mistério e cultura.
Foi referido que este Teatro resulta de uma situação de tragédia e amor. Tragédia, porque por volta de 1804, numa terrível noite de tempestade, um navio veneziano onde viajava o jovem médico, Lázaro Doglioni, naufragou.
Os sobreviventes desse naufrágio foram socorridos por pescadores de Tavira e entregues ao Cônsul de Veneza na cidade de Faro. Durante a convalescença o jovem Lázaro Doglioni tornou-se amigo de um dos mais ilustres habitantes da cidade (Guilherme B. Crispim), por cuja filha se apaixonou e com quem casou.
Assim, passou a dispor de uma fortuna que lhe permitiu adquirir o edifício, daí a tragédia e o amor estarem ligados ao que viria a ser o Teatro Lethes.
Na mística do Teatro Lethes existem outros episódios que ligam amor e tragédia: o de uma bailarina que se terá suicidado no palco por razão de amor não correspondido (cuja imagem já apareceu a algumas pessoas com mais sensibilidade mediúnica), e o de um militar napoleónico, cujo esqueleto foi encontrado, emparedado, no local onde hoje está instalada a cabina eléctrica.
Durante o diálogo com Luís Vicente apercebemo-nos da importante ligação do actor a este espaço, aliás referiu que “tudo é relevante neste lugar, desde as paredes ou a forma como a voz se projecta no Teatro. O entendimento técnico e estético está presente no palco, outrora capela da casa professa, onde viviam os Jesuítas, e depois Colégio de Santiago Maior.” A dimensão do vão da nave da capela terá condicionado a planta da sala.
Dos clássicos à contemporaneidade
Na mitologia grega, Lethes é um mítico rio cujas águas têm o poder de apagar da lembrança as amarguras da vida.
Ao ser o nome de um Teatro remete-nos para momentos de deleite e fruição de espectáculos, esquecendo, por momentos, amarguras.
Luís Vicente, director de produção e director artístico da ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve, considera que os clássicos foram importantes na sua formação e estão presentes nas escolhas da programação, destacando que “o clássico só o é porque nos indica um caminho na contemporaneidade”.
E a partir daqui fomos conversando sobre livros e autores passando por Santo Agostinho, por Jostein Gaarder, que escreveu sobre Santo Agostinho.
Não se podia deixar de falar acerca da obra do escritor e dramaturgo Samuel Beckett (Nobel da Literatura em 1969) e de À Espera de Godot. Falámos da abordagem transversal e pouco comum que Luís Vicente deu à encenação deste texto de Beckett.
Eugène Ionesco e o teatro do absurdo também vieram à conversa. Aliás, Beckett e Ionesco estão entre os principais dramaturgos “do teatro do absurdo”.
Falámos das interpretações de Shakespeare, nomeadamente das que mais marcaram o actor: Otelo e Ricardo III.
Luís Vicente é o actor português, no activo, que mais vezes interpretou textos de Shakespeare. Sente que é um privilégio trabalhar com aqueles textos pelo que eles representam e pela forma como nos levam a interrogar a vida e a natureza humana.
Na conversa sobre criadores, dramaturgos e encenadores Luís Vicente citou esta frase de Ionesco: “Criadores só há dois: Deus que criou o mundo e Shakespeare que criou a humanidade”!
Margarite Duras e Albert Camus (Nobel da Literatura em 1957) são dos autores que mais marcaram a vida e o percurso do actor e encenador, sem esquecer o escritor e dramaturgo italiano Dario Fo (Nobel de Literatura em 1997). Luís Vicente referiu com orgulho que teve a honra de conviver de perto com o laureado e de encenar por duas vezes um texto dele.
A vinda para o Algarve
A vinda para o Algarve, há mais de 20 anos, está ligada a um convite feito pelo professor José Louro para uma conversa com os elementos do Sin-Cera – Grupo de Teatro da Universidade do Algarve. O tema estava ligado à profissionalização dos actores e daí até surguir a ideia de criar algo mais amplo que servisse a região, a nível teatral, foi um passo, depois de alguma pesquisa sobre os investimentos que os municípios da região faziam em Cultura. Assim surgiu a ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve, que já apresentou espectáculos em todos os concelhos da região algarvia e em Espanha, na Alemanha, na Polónia, na Bélgica, no Luxemburgo e no Brasil.
Alguns desses espectáculos aconteceram através do projecto da ACTA, chamado VATe – Vamos Apanhar o Teatro (acrónimo de Vamos Apanhar o Teatro). É o Serviço Educativo itinerante da ACTA, Prémio Gulbenkian-Educação 2010, que já proporcionou formação a professores e educadores de 8 países da UE e também da Turquia e foi objecto de tema de palestra na Universidade de Heidelberg.
Trata-se de um autocarro que foi transformado numa sala de espectáculos e que anda em itinerância pela região e em festivais a levar aprendizagem e revelações inesperadas às crianças e também a idosos de zonas mais interiores. Foi então projecto pioneiro na Europa e, segundo pesquisa da RTP, já existem mais dois “filhos” deste projecto no espaço europeu.
Luís Vicente fez questão de salientar a amizade que o ligou ao professor José Louro, figura incontornável do teatro e da cultura no Algarve e como ele continua presente, sendo homenageado diariamente, ao ter sido atribuído o seu nome à sala de espectáculos do VATe. De forma emotiva acrescentou ainda que “o Zé fez o favor de ser meu amigo durante mais de 40 anos. Eu sabia que o Zé gostava de mim, apreciava o meu trabalho, que ele acompanhava, e por isso é que me convocou a vir até cá. E eu vim, porque também gostava e apreciava o trabalho dele com grupos de amadores e universitários. Trabalho muito sério no plano ético e muito dedicado no plano artístico. E depois cruzei-me aqui com pessoas interessantes, alunas/ os do Zé: a Ana Baião, a Glória Fernandes, o Noé Amorim, o Davide Silva, o João Aidos (que anos mais tarde veio a ser Director-Geral das Artes). Foi bom. É bom! O Zé foi fundamental e incontornável para todos nós”.
A pessoa com quem tive o gosto de conversar no Teatro Lethes é um conceituado actor conhecido do grande público, ao interpretar a personagem Átila na série televisiva Duarte & Companhia na década de 1980. É director de produção desde o início de actividade da ACTA, director artístico desde finais dos anos 90 e pensa continuar no Algarve.
Faço votos de muitos sucessos pela voz que é na região e que continue a contribuir para a dinâmica cultural da cidade de Faro, em particular, e do Algarve em geral. E que o Teatro Lethes continue a ser a referência que é no panorama cultural regional, nacional e internacional.
Caro leitor esteja atento ao que neste lugar de cultura acontece durante onze meses do ano. Dá para perceber que é uma epopeia diária!
A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
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