Paraíso, de Abdulrazak Gurnah, é a segunda e mais recente obra do autor (em Portugal) publicada pela Cavalo de Ferro, com tradução de Eugénia Antunes.
Este romance do mais recente Nobel da Literatura confirma-o como uma voz literária de grande fôlego. Publicado originalmente em 1994, finalista do Booker Prize e do Whitbread Award, foi este romance que claramente projetou Abdulrazak Gurnah para o palco internacional, consagrando-o como um dos grandes escritores da actualidade.
Paraíso é uma fusão de romance de formação, ficção histórica e literatura de viagens. Centra-se na infância e juventude de Yusuf, ao mesmo tempo que nos oferece uma narrativa alegórica, efabulatória, do continente africano nas vésperas da Primeira Guerra Mundial.
Nascido numa pequena povoação da África Oriental, Yusuf vive em fome permanente (como a criança em crescimento que é) e é vendido aos doze anos pelo seu pai ao rico comerciante Aziz, a quem se habituara a chamar tio. Só gradualmente é que o jovem compreenderá que foi entregue como penhor das dívidas que o pobre pai foi contraindo ao longo dos anos e que esta é uma prática relativamente comum naquela zona. Na sua nova vida como escravo, ainda que relativamente confortável, e contando com a estima de Aziz, o seu patrão e dono, Yusuf será depois chamado a participar numa perigosa expedição comercial ao interior do continente. Nessa viagem de iniciação ao coração das trevas de uma parte do imenso e complexo continente africano, Yusuf constatará como a paisagem muda permanentemente. Bela, selvagem, árida, por vezes sem nada a não ser terra vermelha, povoada de animais ferozes que frequentemente disputam o território com os humanos, Yusuf descobre igualmente um território povoado por tribos hostis, africanos muçulmanos, comerciantes indianos e agricultores europeus.
A narrativa é mais coesa do que a de Vidas Seguintes, o primeiro romance deste autor publicado entre nós. Em comum, temos um tom narrativo encantatório, em que, ainda que sejam nomeados espaços físicos, e Zanzibar é um nome distante sempre presente – nunca há uma clara alusão ao país africano em que a ação decorre, ainda que se nomeiem alguns topónimos. Igualmente indefinido é o tempo; só perto do final do romance na alusão à guerra prestes a iniciar entre ingleses e alemães é que percebemos que estes podem ser os últimos dias antes da Primeira Guerra.
Numa narrativa sempre isenta, sem alguma vez procurar dar pistas de leitura, esta é, ainda assim, uma história cheia de subtexto, com um final em aberto. Neste paraíso ameaçado, disputado pelos europeus, Yusuf é ele mesmo uma espécie de anjo. Um jovem bondoso sem mácula, e que se mantém virgem até ao final do livro, apesar das constantes tentações, pois causa permanente admiração e fascínio por onde passa; a sua beleza involuntariamente atrai mulheres e homens. As mulheres são, no entanto, elas próprias propriedade dos maridos, ou pais, pelo que dificilmente se podem deixar tentar.
Yusuf é igualmente fascinado pelo jardim do comerciante Aziz, criado graças ao empenho do introvertido jardineiro. É no trabalho desse jardim que se refugia, sempre que possível.
Vendido como escravo pela própria família, Yusuf simboliza um continente que é também ele disputado a regra e esquadro. Numa época em que se pressente já a flagrante mudança numa terra «pura e luminosa» (p. 126), trazida pelas disputas coloniais e pela guerra na Europa, África é em si um pequeno paraíso virgem, a começar a ser tocada pela mão humana, cujas boas intenções podem ainda assim corromper a bondade natural de um povo: «Um pastor luterano ensinara-os a usar o arado de ferro e a construir a roda. Disse-lhes que eram dádivas do seu Deus, que o enviara para aquela montanha para oferecer a quem ali vivia a salvação das almas.» (p. 71)
São centrais à obra do autor temas como a experiência africana, o colonialismo, a noção de identidade e do valor humano.
«E estes jovens vão perder ainda mais. Um dia, os Europeus vão fazê-los cuspir em tudo o que sabemos e vão fazê-los recitar as suas leis e a sua história do mundo como se fosse a palavra divina. Quando chegar a sua vez de escrever sobre nós, o que vão dizer? Que fizemos escravos.» (p. 97)
Na década de 1960, Abdulrazak Gurnah foi forçado a sair de Zanzibar, então em revolução. Na altura com 18 anos, chegou como refugiado ao Reino Unido, para poder continuar a estudar. Foi professor de Inglês e Literaturas Pós-coloniais na Universidade de Kent. No conjunto da sua obra destacam-se ainda os romances By the Sea (2001), nomeado para o Booker Prize e finalista do Los Angeles Times Book Award, e Desertion (2005), finalista do Commonwealth Writers.