Não tenho a certeza de quando vi a cidade pela primeira vez. Pode ter sido na adolescência, numa viagem de carro, em família, mas não posso garantir. Recordo, isso sim, ter ficado impressionado com o que me pareceu uma ilha. Uma parte do coração da cidade seria uma ilha. Na verdade, não é. Trata-se de uma península, criada pela confluência do rio Saône com o Ródano, à época, ver o lugar da junção dos rios e caminhar até à exaustão por aqueles quarteirões entre rios, fez-me acreditar que aquele centro histórico da cidade, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade, seria mesmo uma ilha.
A cidade que se chamou Lugdunum, sempre teve a sua sorte ligada à de Roma. Por altura do período turbulento que sucedeu ao assassinato de Júlio César, os romanos apropriaram-se de uma povoação Celta e aqui criaram uma capital para a Gália.
Ao espaço que eu pensava ser uma ilha chamavam a ilha (como vêem não era só eu…) de Canabae, uma palavra que também significava celeiro e se aplicava às zonas de expansão urbana, fora dos acampamentos, onde habitavam os comerciantes – melhor localização, entre os dois rios, e com um acesso simples e directo ao mediterrâneo, não poderiam encontrar nesta encruzilhada de rotas comerciais.

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A adolescência chegou ao fim, e o Emilio Salgari, o veronês que sem nunca ter saído de Itália me levou ao Bornéu quase trinta anos antes da viagem real e me apresentou a Sandokan, cedeu o lugar a outras leituras. Maurice Druon deslumbrou-me com os seus Reis Malditos, uma saga em 7 volumes, construída sobre a lenda inventada por outro veronês, Paolo Emilio, no século XV, a de que Jacques de Molay, o último grão-mestre dos Templários. Mais de um século antes, do alto da pira onde seria queimado, teria chamado o rei de França, o papa e o ministro das Finanças, e cérebro atrás de Filipe IV, a encontrarem-se com ele, do lado de lá, antes do final do ano, como se veio a verificar, acrescentando uma maldição para os seus descendentes até à décima terceira geração. Daí, os Reis Malditos.

Tudo isto para contar como me impressionou o episódio contado no quarto volume da obra, A Lei dos Varões, de quando Filipe V faz encerrar os cardeais reunidos num dos mais longos conclaves da história da cristandade. O conclave reuniu, primeiro, em Carpentras, onde cedo se verificou um impasse com a divisão em três grupos incompatíveis. Um grupo importante de cardeais consegue fugir e retomam o conclave, em Lyon, no convento dos Jacobinos – só resta a placa evocativa na praça, durante séculos triangular e agora trapezoidal, que ainda porta o seu nome. Filipe, que ainda é apenas irmão do rei, encerra-os no convento, como soe dizer-se, a cal e canto, para que elejam rapidamente um novo papa. Jacques Duèze, cardeal, chega ao conclave com 72 anos e finge-se profundamente doente. O estratagema resulta e o conclave elege-o, João XXII, para conseguir apressar a sua libertação e na expectativa de um pontificado curto – já retomariam a discussão. João XXII, o segundo papa de Avignon, reinará 18 anos!

Um outro atractivo singular de Lyon são as “traboules”, as chamadas passagens secretas, por entre edifícios, por dentro deles e ligando diferentes ruas. São afinal atalhos glorificados, a maior parte belíssimos e de descoberta e acesso nem sempre evidentes. Traboules vem do latim, trans ambulare ou passar através. No total restam cerca de quinhentas ligando mais de duzentas ruas de Lyon. O número das que estão oficialmente abertas para visitação pelo público é, todavia, bastante reduzido. Mas vale a pena, mesmo, recorrendo à ‘lata’, à proverbial ousadia, para conseguir esgueirar-se nalgumas, como por exemplo na rua de Saint Jean, que invariavelmente se cruzará para visitar a catedral e logo a seguir a manécanterie, talvez o edifício mais antigo da cidade, que entre muitas coisas, nos seus mil anos de história, foi a escola dos jovens do coro da catedral.

Perguntar-se-á, leitor, se ouso seguir para o final desta crónica sem mencionar aquele que é porventura o autor mais famoso natural da cidade. Infelizmente, para além da placa oficial na fachada da casa que o viu nascer, no dia de São Pedro de 1900, pouco mais resta do poeta, escritor, jornalista e aviador francês, desaparecido em pleno vôo, no Verão de 44, ao largo da costa de Marselha. Fica também na nossa ‘ilha’, a casa natal de Antoine de Saint-Exupéry.
Traga consigo o Principezinho, que em bom rigor foi escrito em Nova Iorque e aí publicado, ainda durante a guerra, ilustrado com as aguarelas do autor.

Mas se preferir uma obra menos ‘fofinha’, muna-se para esta viagem de Vol de Nuit, as aventuras dos pilotos da aeroespacial na argentina ou Piloto de Guerra, sobre a invasão alemã da Holanda, da Bélgica e da França no início da guerra. Também publicado em Nova Iorque, e que conseguiu a proeza de ser limitado na edição, pelo governo de Vichy, censurado e proibido pelos nazis em Fevereiro de 43 e, meses mais tarde, por de Gaulle, na Argélia: é obra.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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