A literatura criminal e policial foi sempre, desde há muito tempo, lenha para a fogueira da curiosidade pública sobre os detalhes mais sórdidos da relação humana, sobretudo quando mete sangue, faca e alguidar. Mentes sôfregas, incapazes de matar uma mosca com a ponta das unhas, devoram toneladas e toneladas de páginas com enredos policiais. Esta escrita especializada, cujas origens remontam ao século XIX com Edgar Allan Poe, e se prolonga por inúmeros autores que ficaram para a celebridade como Arthur Conan Doyle ou Agatha Christie são, apesar de tudo, a versão romanceada de uma imaginação sem limites. Em paralelo, sempre houve uma procura pelo relato fiel dos acontecimentos que de facto aconteceram, com nomes verdadeiros, moradas existentes, prisões, julgamentos, condenações, execuções e evasões.
Jornais, revistas, panfletos sempre foram manjedoura para uma manada sedenta de conhecer pormenores. Embora, mesmo a imprensa dita de referência nunca tenha prescindido do seu canto, do seu título, das suas colunas para relatar roubos, agressões, homicídios, sempre houve quem se deliciasse com cara de horror em conhecer a face mais negra da natureza humana concentrada em publicações especializadas no assunto. Sou do tempo do “Jornal do Crime” e seus sucedâneos, em decadência à medida que o espaço mediático das televisões e dos jornais da era moderna foi progressivamente engrossando. Por via do écran, a violência parece normalizada, entrou no menu da nossa dieta informativa, assassínios ou tentativas de assassínio, tiroteios à hora do almoço ou do jantar, entre garfadas e colheradas, copos à saúde de nada nem ninguém, como se nada fosse ou significasse a morte e a vida.
No areópago político discute-se quem prevalece, se a percepção ou a realidade, tal como estas crónicas se titulam há quase três anos nas páginas deste jornal. Discutem-se critérios de contabilização de nacionalidades e etnias nas estatísticas, tentando esconder ou destapar a ligação entre a imigração descontrolada e a criminalidade.
O crime faz parte do desfile temático monocórdico dos espaços noticiosos. É parceiro obrigatório das guerras, das greves, das disfunções da saúde, dos tribunais e das escolas, das manifs, dos protestos, das novelas da bola, das rusgas das autoridades, dos escândalos da corrupção, mas também dos terramotos, cheias, furacões, incêndios, secas. E, claro, não podem faltar os teatrinhos dos partidos políticos à roda do caso e da espuma programados para cada dia, ouvindo a lengalenga de cada qual, regra geral um(a) a palrar com meia dúzia de figurantes à volta dos ombros a compor o cenário, acenando concordâncias com a cabeça, umas mais pronunciadamente, outras menos, consoante os pescoços de gente habituada a engolir sapos e crocodilos.
Um exército inumerável de comentadeiros e “especialistas”, actuando ad nauseum às mãos cheias de manhã até à noite, apimentam o ambiente com línguas ácidas e amargas, sem pingo de independência ou isenção. Não está em causa querer cenários da Alice ou do “país das maravilhas”. O que torna desonesto, aborrecido e deprimente é esta narrativa negativa e desequilibrada onde exemplos de
Numa paleta de cores vibrantes, escolhe-se o preto. Com tantos números que evidenciam progresso social e económico século após século ou, se quisermos num plano mais contemporâneo, cinquenta anos depois de Abril que ora se completam, há quem prefira empolar o que está menos avançado, esquecendo tudo o resto que de bom se conseguiu, e que é gigantesco. Memórias curtas. Espíritos ingratos. Eram felizes e não sabiam.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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