Giacomo Scalisi, um dos fundadores de um notável projeto cultural no Algarve, Lavrar o Mar, partilhou connosco os detalhes sobre o nascimento, desenvolvimento e concretização do emblemático projeto anual em celebração do centenário da cidade de Portimão em 2024.
P – Os projetos culturais desempenham um papel fundamental no desenvolvimento da sociedade e das comunidades locais. Com base na sua experiência com o projeto cultural que realizou, como percebeu o interesse dos dirigentes políticos e do público no Algarve? Tem notado alguma evolução nesse sentido?
R – Há dez anos, decidimos criar e implementar um projeto no Algarve chamado Lavrar o Mar. Trata-se de uma cooperativa cultural com sede em Aljezur, cujo território de intervenção abrange Aljezur e Monchique, no Algarve, e também Odemira, no Alentejo. Quando digo “nós,” refiro-me a mim e à Madalena Victorino, que é coreógrafa e também minha companheira de vida.
É um triângulo territorial localizado no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Inicialmente, a ideia era criar um projeto que não fosse apenas um festival com início e fim, mas uma iniciativa cultural profundamente enraizada nesta região, capaz de contribuir para o desenvolvimento de políticas culturais, que eram inexistentes. O objetivo era estabelecer um projeto bem alicerçado, com visão de futuro, e que integrasse a arte no quotidiano das pessoas.
Trabalhámos muito em grandes centros culturais, teatros e diversos projetos por todo o país. Mas aqui enfrentámos um grande desafio: como poderíamos imaginar uma programação sem uma estrutura ou um espaço, como um teatro, que nos apoiasse? Contudo, este desafio também foi uma oportunidade: uma oportunidade de começar de novo, de abandonar o que, por vezes, não é essencial e de nos reinventarmos, com foco no que é realmente necessário: os artistas. Os artistas são a matéria-prima do nosso trabalho. Sem eles, é difícil; mas sem um teatro, ainda assim, é possível.

P – Como estruturaram e colocaram em prática estes projetos inovadores?
R – Por exemplo, realizámos um longo projeto em Monchique em torno do Medronho (fruto tradicional usado para produzir aguardente). Durante cinco anos, dois autores, Afonso Cruz e Sandro William Junqueira, escreveram sobre o medronho e a serra. Os espetáculos aconteciam em destilarias espalhadas por Monchique. O público deslocava-se de uma destilaria para outra, comia, bebia medronho e ouvia histórias contadas por atrizes e atores.
A Madalena idealizou uma série de espetáculos em piscinas, onde o público tinha de vestir fato de banho, entrar na água e mergulhar no espetáculo juntamente com bailarinos, surfistas e pescadores que participavam nas apresentações.
Também criámos um teatro feito de palha. Nos últimos três anos, temos construído este teatro anualmente. O projeto é liderado pelo arquiteto Pedro Quintela e envolve a participação de agricultores locais que possuem manadas de vacas. Há um momento em que a palha não é necessária – depois de ser colhida e antes de ser utilizada como alimento no inverno. Durante este período de espera, os agricultores emprestam-nos a palha, e construímos o teatro. Todos os anos, o arquiteto desenha uma nova forma para o teatro, que acaba por ter sempre características únicas. É um teatro extraordinário, com o cheiro da palha. Os artistas ficam frequentemente muito surpreendidos e o espaço tem uma acústica muito peculiar.
P – Como é o processo de buscar apoio financeiro para viabilizar projetos como estes?
R – Lavrar o Mar é um projeto que já está a decorrer há 10 anos. Recebemos financiamento através de candidaturas a dois fundos regionais, um no Alentejo e outro no Algarve. Contamos também com o apoio das câmaras municipais envolvidas no projeto: Aljezur, Monchique e Odemira.
Desde 2020, o Ministério da Cultura de Portugal, através da DG Artes, tem financiado o nosso projeto Lavrar o Mar: As Artes no Alto da Serra e na Costa Vicentina.
As cidades têm muitos problemas e não são tão funcionais como gostaríamos
P – Sabemos que o centenário foi um projeto muito importante para Portimão. Poderia contar-nos mais sobre como este projeto foi idealizado e desenvolvido?
R – No ano passado, recebi um convite da Câmara Municipal de Portimão, onde tinha trabalhado 15 anos antes para a inauguração do Teatro Municipal, para organizar um programa artístico para as celebrações dos 100 anos da cidade.
Decidi aceitar o convite, pois era um desafio significativo para mim, e pensar na cidade ao longo dos seus 100 anos de história é algo fascinante. Não se trata apenas de um momento institucional para celebrar os 100 anos, mas de uma oportunidade para cada um de nós repensar a própria cidade e considerar como a arte pode contribuir para o seu desenvolvimento. É refletir sobre o que a cidade quer para si mesma, o que as pessoas desejam e o que os artistas podem trazer à cidade.
O projeto começou em fevereiro de 2024. A minha visão era ampliar o leque de formas artísticas e preencher a cidade de Portimão com iniciativas diversas ao longo do ano. O programa é uma mistura de circo, dança, fotografia, música, teatro, artes plásticas, cinema, participação comunitária e performance.
Um aspeto particularmente interessante foi o grupo de pensadores que criámos. Este grupo incluía um filósofo, um antropólogo, uma historiadora, um artista, um escritor e um arquiteto. Reuniam-se periodicamente – uma vez por mês, às vezes mais – para discutir o conceito de cidade.
Hoje em dia, estamos presos a ritmos frenéticos, o que nos deixa pouco tempo para refletir. Muitas vezes, deixamos que outros decidam por nós e nos digam o que fazer. A pandemia marcou um momento significativo para as pessoas e as cidades, expondo muitos problemas. As cidades tornaram-se quase como prisões, com as pessoas confinadas às suas casas, sem poder sair. Isto fez-nos perceber que as cidades têm muitos problemas e não são tão funcionais como gostaríamos.
Refletimos também sobre como o turismo transformou Portimão, uma vez que é o principal motor económico da cidade.
Como é possível encontrar uma nova visão para a cidade de Portimão? Este foi o tema que explorámos com o grupo de pensadores. Cada membro desenvolveu a sua própria perspetiva e, como resultado, construiu um caminho que percorremos juntos com as pessoas.
Desde do princípio do ano, estão a ser lançados podcasts destas jornadas e publicados os textos selecionados das discussões realizadas durante os encontros.
P – A programação deste projeto para Portimão parece ter sido extremamente diversificada. Pode-nos contar como foi o processo de planeamento e seleção das atividades e como estas refletiram a identidade da cidade?
R – Entre os vários programas, como já tinha mencionado, tivemos workshops musicais com artistas de Portimão que tocam guitarra, instrumentos de sopro ou cantam. Os mestres que conduziram os laboratórios foram os músicos João Krieger, Pedro Salvador e Margarida Mestre, que trabalharam ao longo do ano na componente musical.
Também organizámos uma série de grandes espetáculos ao ar livre. Estes incluíram Éxit, da companhia francesa Inextremiste; Arrêt d’urgence, da companhia Akoreacro; La Spire e Horizon, da companhia Rhizome; e um segmento dedicado às marionetas.
Houve ainda um projeto significativo que também refletiu sobre a cidade: A Biblioteca de Cordas e Nós, do artista espanhol José António Portillo, que foi dividido em três projetos distintos.
Um deles foi Segunda Pele, um projeto que realizámos com adolescentes, onde eles mapearam os seus percursos orgânicos diários pela cidade – de casa para a escola, e assim por diante. Foi fascinante conhecer a cidade a partir de uma perspetiva diferente – a dos adolescentes. Eles fotografaram as suas sombras na cidade e desenharam os seus caminhos nas paredes do projeto Segunda Pele, usando um fio vermelho que atravessava de uma parte a outra, criando novas rotas na cidade.
Outro projeto foi O Museu do Tempo, uma grande iniciativa que conectou a cidade aos seus habitantes. Os participantes selecionaram um objeto de grande significado pessoal, partilharam a sua história e, depois, enterraram-no como memória para a cidade. Eles escolheram locais específicos para enterrar esses objetos, estabelecendo uma ligação emocional com a própria cidade.
Participaram 22 pessoas, desde idosos a jovens e crianças. Nas ruas, foram colocadas placas com a inscrição “Museu do Tempo”, cada uma com um código QR. Os moradores e visitantes podem usar um mapa do museu para encontrar esses locais, digitalizar os códigos com os seus telemóveis e ver os objetos enquanto ouvem as histórias gravadas.
Estes foram os três projetos liderados por José António, que decorreram ao longo de todo o ano. Desde março, a iniciativa envolveu escolas, adolescentes e outros membros da comunidade.
Uma cidade é feita de pessoas ativas – que trabalham, estudam, etc. – mas também de pessoas idosas, algumas das quais estão doentes. Muitas vezes, as cidades não são pensadas para acolher estas pessoas. Apresentámos um espetáculo intitulado Miquelina e Miguel, do coreógrafo Miguel Pereira, que abordou esta questão. O coreógrafo dançou com a sua mãe, que tem Alzheimer. Ela revelou a sua doença em palco, numa relação mãe-filho, onde a doença se transformou num jogo de forma positiva e comovente.
Convidámos assistentes sociais e cuidadores para assistirem. Foi uma forma de salientar que pessoas idosas e doentes também fazem parte da cidade e precisam de um ambiente mais inclusivo e aberto.
Tivemos também duas criações: Rumor, de Madalena Victorino, um espetáculo que abordou a questão do turismo. Ela colaborou com o antropólogo Pedro Prista, membro do nosso grupo de pensamento, para explorar os impactos positivos e negativos do turismo na cidade. Madalena também trabalhou com o grupo folclórico da Figueira, misturando as danças tradicionais do Algarve com intérpretes da dança contemporânea, criando uma simbiose extraordinária e explosiva que surgiu de reflexões sobre como a cidade mudou tão dramaticamente.
Apresentámos ainda alguns projetos culinários, incluindo uma criação minha sobre a pesca do bacalhau, que realizámos em Alvor, em colaboração com a comunidade piscatória local.
Encantation foi outro projeto – uma performance culinária criada para um chef com duas estrelas Michelin, em diálogo com Johann le Guilherm. Foi uma experiência culinária maravilhosa no mundo dos sabores e da experimentação.
O espetáculo Terces, o mais circense de todos, desafiou as leis da gravidade física. Apresentou o universo artístico de Johann le Guilherm, da companhia Cirque Ici, um artista que transcende as artes plásticas, o circo contemporâneo, o teatro e o pensamento. Ao longo de 25 anos, Johann desenvolveu o seu próprio alfabeto artístico, composto por objetos, ideias e códigos para expressar a sua visão do mundo.
Também organizámos uma exposição fotográfica no museu da cidade, intitulada A Cidade Fala. As 56 janelas do museu exibiram cada uma o retrato de um habitante de Portimão. A ideia era destacar residentes muitas vezes invisíveis – idosos, pessoas que trabalharam na indústria conserveira, construtores de barcos, comerciantes e moradores das periferias da cidade. Estas pessoas são parte integrante de Portimão, e imaginámos a cidade a cuidar delas.
Este projeto também incluiu um documentário que explorou o que as pessoas de Portimão querem para a sua cidade.
No dia 11 de dezembro de 2024, dia oficial da cidade de Portimão, instalámos uma estrutura de arte plástica na praça. Consistia em 450 barrotes de madeira que formaram uma estrutura em movimento e permaneceram na praça durante todo o dia.
O último espetáculo do programa foi uma peça de teatro do Teatro do Vestido, intitulada Esta Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela. A produção levou o público numa viagem por vários locais de Portimão, à procura de histórias que narram a essência da cidade.
P – Todos esses projetos parecem uma aventura, uma experiência de interação pública ao vivo. Houve alguma descoberta interessante feita durante o processo? Já que é sempre um assunto em aberto.
R – Claro, muitas descobertas. Explorar a cidade com os integrantes do grupo dos pensadores foi incrível. O arquiteto Leandro Martins Arez mostrou-nos alguns prédios escondidos na cidade que são exemplos de arquitetura marcante. No meio do caos desta cidade, existem coisas verdadeiramente maravilhosas. Sentimos a ausência de um pólo central na cidade – um centro histórico ou um ponto de encontro que pudesse unir as pessoas. Ainda assim, descobrimos inúmeras coisas, processos criativos, e através das performances alcançamos um novo público.
P – Uma última pergunta: como surgiu o nome do projeto, “Lavrar o Mar”?
R – “Lavrar o Mar” é uma técnica de pesca da sardinha. No passado, as redes eram lançadas e depois puxadas de volta – era uma forma de literalmente “arar o mar”. Há também outro aspecto interessante. As pessoas do interior, quando não encontravam trabalho ali, vinham para o litoral colher algas. De certa forma, eles também estavam “arando o mar”. Sempre existiu esta ligação entre o mar e a terra. Os pescadores, quando não tinham trabalho no mar, voltavam-se para a agricultura e vice-versa. Vivemos entre a Serra de Monchique e Aljezur, que fica à beira-mar. Assim, esta ideia de terra e mar unindo-se inspirou o nome “Lavrar o Mar”.
Gravado por Victoria Prokopchuk a partir das palavras de Giacomo Scalisi
Site: https://www.lavraromar.pt/
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