Era provavelmente demasiado novo quando vi “Os Acusados” com Jodie Foster, filme em que é violada porque estava bêbada, porque usava minissaia, porque dançou com um dos violadores, enfim, foi violada porque era mulher. Talvez por isso tenha deixado uma marca tão grande em mim.
Quando se fala no aumento da criminalidade violenta, a conversa continua a ser empurrada, tanto por políticos como pela imprensa, na direcção da imigração e nunca na dos crimes cuja raiz reside na misoginia estrutural. Não só os de violência doméstica, mas também os de violação.
Quando jovens de 16 anos, como os de Loures, violam e falam do facto como se fosse um acto consensual, tão importante como a consequência dos seus actos, é o entendimento de que não têm a noção de que são violadores ou do que constitui uma violação. Isto expõe claramente quanto falhámos colectivamente em estabelecer fronteiras, direitos e deveres.

Autor, tradutor e editor
Não basta educar os filhos para deixar de ser necessário proteger as filhas, é preciso educar também as filhas para perceberem o que são os limites e o que fazer quando os mesmo são ultrapassados
Enquanto não tivermos este diálogo como sociedade, situações deste género continuarão a acontecer, não obstante a moldura penal.
A mensagem veiculada socialmente é que o corpo – todos os corpos mas sobretudo o feminino – é transaccionável e sujeito aos desejos de usufruto e possessão. Dentro da mesma uniformidade mercantilista que tudo verga, a questão premente, antes de ser de género, é de classe. Classe cuja primazia é masculina, e em que a feminina, é, minoritária, por razões tão óbvias como o acesso igualitário às oportunidades, aos direitos básicos e aos próprios mecanismos decisórios sobre a sua própria condição. Não devemos ainda assim perder de vista que um feminismo produtivo terá de ser capaz de congregar outras minorias étnicas, sociais, económicas e sexuais.
Pelo discurso triunfal dos autoproclamados influencers de Loures, é evidente a desumanização da mulher, tornada troféu para gabarolice de proezas sexuais, que não podemos omitir, foram historicamente encorajadas e premiadas e que o continuam a ser. Não estamos assim tão longe do direito de Prima Nocte como possamos pensar. Desde a religião organizada, e também na desorganizada, até à arte ou à própria pornografia, em todas as dimensões, tudo continua organizado em redor da supremacia masculina.
Mesmo que em formas diferentes, tudo conduz ao cumshot e termina depois dele.
Promovemos ainda a condição feminina no binómio puta/santa, sintoma da sua problemática fundacional, impossível de resolver apenas no plano educacional. No imediato é obviamente necessária a intervenção de estruturas educacionais, quer familiares, escolares ou empresariais. Porque o clima ainda é de guerra, a acção deve ser urgente.
Não basta educar os filhos para deixar de ser necessário proteger as filhas, é preciso educar também as filhas para perceberem o que são os limites e o que fazer quando os mesmo são ultrapassados. E que se saibam proteger a elas mesmas.
Ainda assim, nada disto será suficiente para resolver o problema de fundo, e este é que, num regime doentiamente competitivo, possessivo e ultramaterialista, jamais será possível que quem não tem acesso ao poder, não só esteja protegido por defeito, como possa ter a autonomia necessária para tomar decisões.
As redes sociais não são o problema, apenas são um catalisador mais feroz que veio descobrir ainda mais o véu de problemas inerentes à organização social que tudo sacrifica perante o capital, esse sim, verdadeiro, último e fatal altar.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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