Comer em conjunto associa valores simbólicos e psicoafectivos , é um acto cultural. O estudo da alimentação como expressão de cultura é mais recente, não integrava os temas curriculares das universidades em diferentes épocas históricas, mas os filósofos e cientistas da Antiguidade referiram-se sempre à relação entre agricultura, alimentos e saúde.
Religião, medicina, botânica farmacológica, entre outras disciplinas, relevaram a influência dos alimentos na saúde humana e nas doenças.
Os produtos da terra-mãe foram sacralizados em rituais colectivos, aos animais e plantas são dedicadas festas comunitárias com séculos, que ainda hoje subsistem.
A cultura portuguesa de matriz mediterrânica integra festividades cíclicas, estruturadas por marcadores temporais, equinócios e solstícios, pelas ceifas, vindimas e apanha da azeitona para os lagares, bênçãos do gado e das pescas,…
Permanecem rituais alimentares no cristianismo e no Islão, comida “kosher” do judaísmo…
A relação entre fisiologia e simbólico manifesta-se no acto de comer, os alimentos têm significados, a mesa define hierarquias e convivialidades.
Através da arqueologia pré-histórica sabe-se que as primeiras sociedades foram omnívoras, os humanos consumiam predominantemente vegetais, depois como caçadores, por razões de alterações no modo de vida e consequentes necessidades energéticas, foram grandes comedores de carne.
A primatologia forneceu importantes informações, em todos os primatas a primeira preocupação é encontrar o que comer, donde resultaram variados regimes alimentares.
A prática da caça teve consequências no desenvolvimento da inteligência, na invenção de instrumentos e na destreza, também simbólicas, socioeconómicas, de organização social.
As comunidades humanas descobriram a utilização do fogo para cozer os produtos, eliminando substâncias tóxicas e organismos nocivos, surgiu também a possibilidade de os melhorar com condimentos que lhes dão sabores e aromatizam.
Foi a descoberta do prazer da cozinha e da culinária. As tarefas doméstica foram na divisão social do trabalho atribuídas às mulheres, estas cuidavam dos filhos e da família alargada. O segredo foi “fazer muito com pouco”, aproveitando os recursos locais e a horta…
Em todas as sociedades estudadas se reconhecem práticas alimentares colectivas e jejuns que serviram para meditação sobre o flagelo maior da humanidade, a fome, também para limpeza do organismo de toxinas e excessos
Relação cultural complexa e contraditória, hoje visíveis no animal de companhia considerado como familiar a par de relativa indiferença em relação à vida selvagem indispensável à biodiversidade. Circos, jogos com animais e tauromaquia são hoje motivo de acalorados debates morais.
A questão da carne está no centro das atenções, sobretudo por razões ambientais, a pecuária será a responsável por uma percentagem elevada de libertação de gases com efeito de estufa e pelo elevado consumo de água. A obesidade com origem em alimentos industriais de origem animal altamente processados é hoje uma epidemia global.
A industrialização dos séculos XVIII e XIX provocou alterações no mundo laboral, surgiram a restauração exterior ao espaço doméstico, a estalagem de estrada deu lugar ao restaurante e ao pronto a comer, a comida é hoje transportada ao domicílio. No ensino universitário surgiram o nutricionismo na medicina pública, disciplinas ligadas à cozinha e gastronomia nos cursos de turismo.
A maior preocupação centra-se na produção agrícola intensiva e nas urbanizações em solos agrícolas férteis, a vida colectiva depende dos centros comerciais e cadeias de distribuição e comercialização, a população já não sabe produzir os próprios alimentos.
Crescimento produtivista descontrolado trouxe novos problemas globais, em poucas décadas a biodiversidade, recursos endógenos e a segurança alimentar estão sob ameaça. É evidente que seria possível um novo modelo económico baseado em relações internacionais de cooperação, mas a alimentação é um dos maiores negócios mundiais.
A caminho de dez mil milhões de habitantes como iremos preservar e alimentar o planeta?
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: História retroactiva: esclavagismos, colonialismos, restituições… | Por Jorge Queiroz