Apareceu nas redes sociais uma publicação sobre a tribo Himba, da Namíbia, que provocou muita controvérsia. A organização Full Fact concluiu que a tradição a que a dita publicação se refere não existe na tribo Himba tratando-se, portanto, de um post falso.
Porém, sendo real ou imaginada, não mais consegui parar de pensar na história ali partilhada. Contava-se que, para este povo, a data de nascimento de uma criança não coincide com o dia em que a mãe a dá à luz, nem com o dia em que se calcula ter sido concebida. O nascimento de uma criança corresponderia ao momento em que a futura progenitora ouve pela primeira vez a canção da alma do filho que virá a gerar dentro de si.
A escuta desta canção não surgiria espontaneamente, mas seria fruto do desejo de conceber da mulher Himba, que teria de actuar nesse sentido. O primeiro passo consistiria em sentar-se à sombra de uma árvore e descansar. Só se levantaria dali quando ouvisse dentro de si a música da criança que iria gerar. Uma vez ciente dessa melodia a mãe iria ter com o homem, futuro pai da criança, e ensinar-lhe-ia essa canção. Durante o acto conceptivo, ambos cantariam esta canção para convidar o futuro bebé a nascer. Durante a gravidez, a gestante ensinaria a canção às parteiras da tribo e às mulheres mais velhas da aldeia que, quando o bebé nascesse, a cantariam para o receber. À medida que a criança crescesse, a sua canção iria sendo conhecida por mais elementos da tribo. Se a criança se magoasse, cantar-lha-iam. Se o/a jovem fizesse algo extraordinário, toda a tribo entoaria a canção da sua alma em sinal de homenagem.
No casamento, as canções de ambos noivos seriam cantadas em conjunto.
Incrivelmente, se algum elemento desta tribo cometesse algum crime, ou actuasse de forma considerada errada, não se lhe prescreveria uma punição. Pelo contrário, esta pessoa seria colocada no centro de um círculo e toda a tribo cantaria a sua canção, por forma a recordar-lhe quem é. Os Himba acreditariam que ao reconhecermos a música da nossa alma, jamais sentimos o desejo de prejudicar outrem.
Uma vez no leito de morte, toda a tribo se juntaria para entoar ao moribundo a sua canção uma última vez.
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Esta história trouxe-me imediatamente à memória um outro texto ficcional que li, há muitos anos atrás, intitulado A condenação pitagórica de Aristóteles, da autoria de María Zambrano. Nele, a filósofa conta-nos, em não mais de página e meia, as peripécias com que se depara Aristóteles quando, ao subir “às mais altas esferas”, encontra os pitagóricos à sua espera. Sem explicações e ante a sua perplexidade, entregam-lhe umas partituras rudimentares e uma lira e deixam-no só. O ilustre filósofo aplica-se então com afinco, mas sem grande talento, à lira e às partituras, mas o tempo passava, passava, e ninguém o vinha buscar. É que a música é a aritmética inconsciente dos números da alma e só quando Aristóteles encontrasse, e não teoricamente, os números da sua alma, quando os fizesse soar, se levantaria dali.
Para os pitagóricos, é o número que dá forma e expressão à estrutura da realidade, de tal modo que a verdadeira sabedoria consistiria em perceber os números, ou em identificar o tecido de ritmos de que estaria composto o universo.
Recordemos que também Platão, no Fédon, nos conta como Sócrates, enquanto aguardava na prisão o dia destinado ao cumprimento da sua sentença de morte, compôs um hino a Apolo e colocou em verso algumas fábulas de Esopo. Sócrates sempre tinha pensado que a filosofia era a mais excelente forma de música, mas ante a aproximação da morte, e a insistência de um sonho para que compusera música, resolveu obedecer.
Na antiga Grécia coexistiam duas tradições musicais, uma baseada no mito de Orfeu, que deu origem aos cultos órficos, e outra dionisíaca a que correspondem os rituais realizados em honra do deus Dioniso. Orfeu toca uma lira – justamente, Aristóteles recebe dos pitagóricos uma lira – e canta ou recita belos poemas. Em Orfeu a palavra está presente. Dioniso, pelo contrário, é um músico puramente instrumental, tocador de flauta cujos sons são de tal forma inebriantes, que os corpos não lhe resistem, sendo o seu culto realizado em forma de dança. Tanto Orfeu como Dioniso ressaltam o poder mágico da música, a sua capacidade para subverter as leis naturais, para reconciliar princípios antagónicos através do encantamento que gera nos que a escutam/dançam. Em ambos os casos, a música actua pela via sensitiva do prazer, que enfeitiça os ouvintes/bailarinos, os quais, dominados por um poder superior, a seguem. Orfeu é sempre representado serena e contidamente; não é por acaso que a palavra faz parte da sua arte – a música com palavra é música com logos, música racionalizada. Quando a música aparece associada ao conhecimento, trata-se de uma música que obedece a regras rígidas e que pouco possui de improvisação, o instrumento escolhido é quase sempre a lira apolínea. Pelo contrário, Dioniso é o deus da embriaguez, do frenesim e da desmedida, dirige os coros das bacantes que cantam e dançam ao som da sua flauta, que tem a capacidade de pôr em movimento as forças primogénitas da natureza, originando comportamentos orgiásticos. A flauta dionisíaca produz demasiados sons e conduz à loucura e à desmedida.
Superando a rivalidade entre Orfeu e Dioniso, os principais conceitos musicais dos pitagóricos, que influenciam grandemente a filosofia vindoura, são os seguintes: cosmos, harmonia e psicagogia. Ainda que de forma breve, vejamos em que consiste cada um deles.
Os pitagóricos supunham que todos os seres eram, em essência, constituídos por números, tendo chegado a esta conclusão pela observação de uma regularidade matemática em fenómenos como a acústica, que generalizaram a todas as outras coisas. Convencidos de que o universo está constituído harmoniosamente, os pitagóricos chamaram-lhe cosmos, que se pode traduzir por ordem. Desta forma, a ordem, a regularidade, a simetria, enfim, todas as categorias subordinadas ao número, passaram também a ser constituintes fundamentais da estética antiga: a beleza só era encontrada quando se conjugavam estes elementos harmoniosamente.
Seguindo este mesmo raciocínio, os pitagóricos consideravam que a alma humana, apesar de composta por elementos muito diferentes, ou mesmo opostos, era harmonia. A harmonia, numa primeira acepção, consiste num equilíbrio de forças opostas. Na afinação da lira, por exemplo, está presente essa tensão entre contrários regida por uma proporção numérica: as cordas emitem sons harmoniosos quando o seu comprimento corresponde a certas proporções numéricas; por exemplo, metade produz a oitava, dois terços a quinta. Para conhecer a alma haveria, então, que encontrar as proporções numéricas em que se baseia a sua harmonia.
Certamente, María Zambrano teria presente esta ideia quando escreveu a história ficcional a que fazemos referência acima. Entregando-lhe uma lira para as mãos, Aristóteles é condenado pelos pitagóricos a permanecer no sítio em que se encontra até encontrar o número/proporção da sua alma e a expressá-lo em termos musicais. Dito de outro modo, não pertencendo a uma tribo Himba que lhe recordasse a canção da sua alma, Aristóteles teria de a encontrar sozinho.
A psicagogia constitui, talvez, o elemento mais inovador da filosofia pitagórica e, simultaneamente, aquele que mais consequências provoca. Os pitagóricos verificaram que tendo duas liras, e fazendo soar uma delas, a outra responde, como se de um eco se tratasse, ao som produzido pela primeira. Desta observação concluíram que a música possui um poder muito superior ao das restantes artes, que consiste em poder actuar sobre a alma, melhorando-a ou corrompendo-a. Também se deram conta de que a música, tal como a dança, afecta não somente os que as praticam, mas também e com bastante intensidade, os que apenas ouvem ou vêem.
Mais tarde, Platão extrai deste poder psicagógico da música um julgamento ético: música boa, que suscita a elevação do espírito, e música má, que despertaria o que de mais irracional existe no ser humano. Daqui para a actual musicoterapia, é só um passo.
Esta ideia de tomar a alma como um instrumento musical, sugere que cada um de nós emite uma sonoridade, que será harmoniosa se estamos afinados; o contrário ocorrendo se não o estamos. A alma afinada e de ouvido treinado, tenderia a rodear-se de outras almas igualmente afinadas e a escolher circunstâncias favoráveis à harmonia. O contrário ocorreria se não conhecemos/escutamos a música da nossa alma: viveríamos de forma desafinada.
Seja fantasia ou realidade, talvez valesse a pena que cada um de nós experimentasse sentar-se sossegadamente à sombra de uma árvore para tentar descobrir a canção da sua alma.
Café Filosófico | 16 Dezembro | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira
Inscrições: mailto:[email protected]
Seguido do lançamento do livro Café Filosófico. O Som do Pensamento de Maria João Neves, às 20:00.
*A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa