
João Rendeiro fugiu para a África do Sul para não ser preso em Portugal pelos crimes que cometeu à frente do Banco Privado Português. É um banqueiro apanhado nas malhas da justiça, rede que apanhou Ricardo Salgado, mas que não o deteve. Oliveira Costa, hoje falecido, foi o primeiro a ser preso (preventivamente). BPP, BES e BPN foram casos da banca que se tornaram casos de polícia.
Em comum, todos têm a intervenção do Estado: uma nacionalização, do BPN; uma liquidação, do BPP; uma resolução, do BES. Ou melhor, houve duas resoluções, já que também o Banif deixou de existir para ser dividido em três.
São estas as grandes intervenções no sector bancário dos últimos anos, com problemas diferentes na sua origem e implicações distintas para o futuro. E, nestes, só o Banif não é um caso judicial.
Na entrevista que deu à CNN Portugal, João Rendeiro afirmou-se vítima de perseguição, porque os crimes que lhe são imputados são migalhas quando comparados com o que recaem sobre Ricardo Salgado, que está longe de ter sentença.
É assim? No que se distinguem os casos? Qual deles penalizou mais os contribuintes? E os clientes? E qual destruiu mais postos de trabalho?
Há escândalos na banca mais escandalosos do que outros? Explicamos-lhe de seguida.
“Esses crimes [imputados a João Rendeiro], em comparação com os 60 crimes de que o Doutor Ricardo Salgado está acusado, não sendo poucos, não são muitos. E no entanto, o Doutor Ricardo Salgado segue com a sua vida tranquila em Lisboa.”
João Rendeiro, CNN
1.
QUAL FOI O PROBLEMA?
O BES passou anos a emprestar dinheiro em excesso às empresas do próprio Grupo Espírito Santo quando se descobriu que uma delas, a Espírito Santo International, tinha contabilidade falseada. Nessa altura, deixou de haver margem para as empresas do grupo cumprirem as suas obrigações. A juntar-se a isso, foram feitas operações que descapitalizaram o banco, que beneficiaram terceiros. O banco acabou por ser alvo de uma medida de resolução determinada pelo Banco de Portugal, por pressão de medidas tomadas pelo Banco Central Europeu. O BES foi resolvido com uma divisão em dois: as partes então consideradas saudáveis foram para o Novo Banco; as que eram tóxicas já na altura permaneceram no banco, que se tornou em BES “mau”, e que foi para liquidação.
No BPP, o problema que levou à liquidação do banco, que em 2008 precisou de ajuda com garantia do Estado (450 milhões), foi a falta de liquidez. A queda do Lehman Brothers e a descida na avaliação do “rating” intensificaram os receios sobre um banco que remunerava bem os seus clientes e comercializava produtos de retorno absoluto como se depósitos se tratasse. Enfrentou depois outros problemas e ilícitos de natureza criminal por parte da sua gestão executiva. Funcionou até 2010, ano em que foi declarada a liquidação do BPP.
O BPN tinha um buraco nas contas de 700 milhões de euros quando foi nacionalizado em novembro de 2008. Em 2009 o buraco ascendia a 1,8 mil milhões de euros contabilizando as imparidades do banco insular. O que aconteceu? O BPN criou um balcão virtual, que funcionava em triangulação com o Banco de Cabo Verde e o BPN Cayman, por onde passavam transferências e operações ilegais através de inúmeras entidades offshore. Serviu para esconder prejuízos, créditos de clientes e vários outros expedientes, que o Banco de Portugal (BdP) só descobriu tarde e a más horas.
O Banif foi um dos bancos que precisou de intervenção do Estado na época da troika, uma ajuda de tal proporção que acabou por tornar o Estado como maior detentor do seu capital. Só que os rácios de solidez nunca convenceram, devido a uma frágil estrutura acionista, e a Comissão Europeia duvidava da viabilidade da reestruturação proposta para o banco. Além das dúvidas sobre o capital, uma notícia da TVI deu conta do fecho do banco, o que precipitou uma fuga de depósitos, trazendo problemas de liquidez. A resolução foi a solução encontrada pelo Banco de Portugal a 20 de dezembro de 2015.
2.
QUE CRIMES FORAM (ALEGADAMENTE) COMETIDOS?
O caso BES gerou inúmeros processos-crime, sendo que o inquérito Universo Espírito Santo já levou a uma acusação pelo Ministério Público, em que Ricardo Salgado, CEO, foi visado em 65 crimes, dos quais burla qualificada, corrupção ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento, fraude no comércio internacional e associação criminosa. Aguarda-se a instrução do processo, em que há 25 acusados (18 pessoas), que vai determinar se haverá julgamento. Há outros processos em investigação, como as relações do GES com a Venezuela e altos cargos públicos na América Latina, bem como crimes de natureza tributária, todos sem desfecho.
No BPP, os crimes vão desde abuso de confiança, fraude fiscal, branqueamento de capitais (apropriação ilegal de dinheiro do pagamento através do desvio de 31 milhões de euros), falsificação de documentos e falsidade informática (diz respeito aos produtos de retorno absoluto) e burla. O período em que foram cometidos vai de 2001 a 2008.
Vários responsáveis do BPN, com José Oliveira Costa, foram acusados de vários crimes como falsificação de documentos, burla qualificada, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais no mega-caso em torno do BPN e do grupo que a detinha, a Sociedade Lusa de Negócios, e não só.
Apesar da necessidade de intervenção na instituição financeira, o Banif difere dos restantes bancos por não ter grandes processos-crime que tenham motivado a sua queda.
3.
QUE CONDENAÇÕES JÁ HOUVE E QUAIS AINDA ESTÃO PENDENTES?
No campo criminal não há ainda qualquer condenação, nem de primeira instância. No que diz respeito a casos saídos da esfera administrativa, já houve. O Banco de Portugal fechou cinco processos (eram seis, mas dois foram agregados), dois deles já transitados em julgado nos tribunais, sem hipótese de recurso. Um deles, em que há atos dolosos de gestão ruinosa, é o relativo ao papel comercial, que levou à coima de 3,7 milhões a Salgado (e foi neste que o tribunal de Santarém quis agora avançar para a execução de bens para saldar a coima). O outro já transitado em julgado é sobre a Espírito Santo Financial Group, com uma coima de 75 mil euros a Salgado. Falta de controlo de branqueamento, incumprimento de normas e de proibições e prestações de informações falsas estão na origem dos restantes processos, que levam as coimas aplicadas ao ex-banqueiro a perto de 8 milhões: nestes casos, embora já tenha havido condenações em todos por pelo menos um tribunal, ainda não transitou em julgado. O mesmo aconteceu com processos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, com coima de 2 milhões ao banqueiro, mas ainda sem desfecho em tribunal. Em todos eles, a que se junta a qualificação da insolvência do BES como culposa, há outros antigos gestores condenados.
Embora vários membros da administração do BPP tenham sido condenados por vários crimes, foi para o fundador que o Ministério Público, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários tiveram a mão mais pesada. João Rendeiro foi condenado em três processos a penas de prisão efetiva, sendo ainda – juntamente com a sua equipa – acusado de falência dolosa. No de falsificação de documentos e falsidade informática, que já transitou em julgado, Rendeiro é condenado a 5 anos e oito meses de prisão. Fugiu em setembro, mas três meses depois, este sábado, dia 11 de dezembro, foi encontrado na África do Sul numa zona luxuosa. Fuga que deverá trazer mais crimes, nomeadamente pelo que ocorreu a quadros e obras de arte que deviam estar guardadas. Noutro processo de natureza criminal, no que foi condenado a 10 anos de prisão pela prática de abuso de confiança, fraude fiscal e branqueamento de capitais, Rendeiro já recorreu para a Relação. No mais recente, o antigo banqueiro foi condenado a 3 anos e 6 meses de prisão por burla a um diplomata. Nos dois processos de contraordenação da CMVM e do Banco de Portugal – criação de veículos fictícios e ocultação de contabilidade, entre outros ilícitos – Rendeiro foi condenado ao pagamento de 2,5 milhões de euros, dos quais 1,5 milhões ao supervisor bancário, mas alega não pagar por ter arrestados os seus bens.
Entre os 15 arguidos acusados no megaprocesso-crime12 foram condenados. Dos 23 acusados pelo Banco de Portugal, 17 foram condenados. Entre eles, claro, está José Oliveira e Costa, que morreu em março de 2020, tinha 84 anos. Não chegou a pagar a coima ao Banco de Portugal. O líder do BPN até ao início de 2008 foi condenado a 15 anos de prisão efetiva por abuso de confiança, falsificação de documentos, fraude fiscal qualificada, burla qualificada e branqueamento de capitais. A detenção ocorreu em novembro de 2008 e oito meses depois, em julho de 2009, foi libertado ficando em prisão domiciliária até novembro de 2010, quando passou a estar em liberdade, não podendo, no entanto, ausentar-se do país sem autorização do juiz e com obrigação de comparecer semanalmente perante as autoridades. Foi ainda condenado num outro processo por burla e fraude fiscal a 12 anos de prisão. O homem-forte do BPN foi também condenado pelo Banco de Portugal por prestação de informação falsa (ocultação do banco insular) e falsificação de contas, numa coima de 950 mil euros por factos ocorridos entre 2002 e 2007. Não recorreu para o tribunal, mas também não pagou. Disse não ter dinheiro para o fazer e que tinha os bens arrestados.
Houve condenações no campo administrativo, mas a sua gravidade é limitada e as sanções associadas de montante reduzido (sobretudo na comparação com os restantes). O Banco de Portugal condenou o Banif a uma coima de 280 mil euros devido à infrações no reporte dos fundos próprios da instituição, bem como a ausência de mecanismos de branqueamento, num processo com uma sanção de 400 mil. Na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, não foram detetadas práticas de vendas irregulares de forma alargada – o que tem dificultado até encontrar uma solução de ressarcimento para todos os lesados pela queda do banco.
4.
QUANTOS LESADOS HOUVE E QUANTO PERDERAM?
Não há um número exato, mas há uma estimativa que pode ajudar: quantos foram aqueles que reclamaram na insolvência do BES. Em 2019, a comissão liquidatária recebeu cerca de 24 mil reclamações de crédito, mas acabou por só reconhecer um total de 5 mil. Alargando para todo o grupo, os lesados são muitos mais, tendo em conta as falências de empresas noutros países, como Luxemburgo.
No BPP há cerca de 6000 credores, dos quais 3000 lesados já receberam a quase totalidade do investimento aplicado no retorno absoluto e depósitos até 100 mil euros. Há ainda, segundo a Associação da Privado Cientes, cerca de 30 clientes que tinham depósitos acima dos 100 mil euros e não foram ressarcidos.
Centenas de lesados do BPN recorreram aos tribunais. Segundo a Associação Nacional de Defesa dos Direitos dos Clientes do BPN existem cerca de 2000 clientes que foram enganados que os levaram a aplicar o seu dinheiro em papel comercial da SLN Valor (holding que controlava o banco) garantindo-lhes que se tratava de um produto igual a um depósito a prazo. Muitos nem assinaram documentos, dizia a associação em novembro de 2009. Avançavam que o montante em causa ascendia a 200 milhões de euros.
A reclamação de créditos no Banif só terminou em junho deste ano, pelo que ainda não há uma listagem com a graduação de créditos. Foram recebidos mais de 6 mil pedidos de reembolso junto da comissão liquidatária. Entre eles há detentores de títulos de dívida, sendo que os acionistas também perderam tudo: e aqui, claro, está o Estado, que era o maior detentor de capital em 2015.
5.
QUANTO DINHEIRO É QUE OS CONTRIBUINTES JÁ SUPORTARAM?
O processo-crime do GES fala em 11,8 mil milhões de euros em perdas causadas pelas ações dos acusados. Nas reclamações de crédito à comissão liquidatária, houve o reconhecimento de 5 mil milhões de euros por saldar. O BES foi alvo de uma medida de intervenção do Banco de Portugal, recebendo 4,9 mil milhões de euros do Fundo de Resolução (3,9 mil milhões emprestados diretamente pelos contribuintes), não contando com todos os impactos indiretos da queda da instituição e do Grupo Espírito Santo. Foi criado o Novo Banco, que consumiu já mais de 3 mil milhões de euros do Fundo de Resolução (2,1 mil milhões emprestados pelo Estado). A fatura ainda pode crescer com processos judiciais ou indemnizações a pagar na liquidação do BES “mau” (e ainda uns 600 milhões, à luz do acordo fechado em 2017 quando o Novo Banco foi vendido aos americanos da Lone Star).
O Estado chegou-se à frente com 450 milhões de euros para ajudar o banco, depois de a banca ter executado a garantia que tinha sido concedida. Segundo o último balanço da comissão liquidatária, o Estado ainda tem 45 milhões por receber daquele montante, sendo o credor com prioridade no ressarcimento. O Fundo de Garantia de Depósitos e o Sistema de Indemnização aos Investidores gastaram 200 milhões de euros, tendo vindo a recuperar tal montante (ainda não na totalidade). Já os acionistas e os clientes credores com depósitos acima dos 100 mil euros perderem o que tinham, só o vão recuperar se a comissão liquidatária conseguir ter, na massa de insolvência, dinheiro para poder pagar – e só após recuperação pelo Estado.
O banco foi nacionalizado em 2008 e vendido em 2012 ao BIC por 40 milhões. Deixou os ativos tóxicos num veículo do Estado à Parvalorem, Parups e Parparticipadas, que absorveram créditos malparados, imóveis e participadas, para posterior venda ou liquidação. O buraco ainda não está fechado, mas até agora o montante já gasto ascende a 5 mil milhões. Pode subir aos 9 mil milhões, se os créditos em incumprimento que ficaram por conta do Estado não forem recuperados pelas empresas estatais.
A resolução do Banif contou com a mobilização de 3 mil milhões de euros públicos, que ajudaram à sua divisão por três entidades: principais ativos e passivos foram para o Santander; aqueles que o banco não quis foram para um novo veículo, a Oitante; uma parte ficou no Banif “mau”, que seguiu para liquidação. A grande maioria do montante serviu para estabilizar o Banif que foi para o Santander, estando a decorrer a recuperação dos 746 milhões que protegiam a Oitante.
6.
O QUE ACONTECEU AOS TRABALHADORES?
O BES empregava, no fim de junho de 2014, um mês antes da intervenção do Banco de Portugal, cerca de 6500 trabalhadores em Portugal, contando depois com mais de 3 mil em subsidiárias. O Novo Banco tem hoje 4470 trabalhadores, tendo já havido programas de redução de pessoal.
No fim de 2007, antes da intervenção do Banco de Portugal, o BPP contava com 171 trabalhadores. O banco foi liquidado, pelo que os postos de trabalho foram, na sua generalidade, eliminados.
No final de 2007, antes da nacionalização no ano que se seguiu, o banco tinha 1875 trabalhadores. Em 2012, quando foi vendido ao BIC (hoje sob a marca Eurobic), tinha 1580. Mas não foram todos para o banco detido por Isabel dos Santos: o BIC ficou com 1000 trabalhadores; os restantes 580 foram para a Parvalorem, sociedade estatal que ficou com os ativos tóxicos. Aí, houve rescisões e, em 2020, a Parvalorem tem cerca de 143 trabalhadores.
Houve uma divisão dos trabalhadores entre os que foram para o Santander (cerca de 1.100 funcionários do Banif) e para um veículo que foi então criado, a Oitante (perto de 500). Desde então, o Santander tem feito redução de pessoal, à semelhança do sector, até porque ficou sobredimensionado. Na Oitante, tal também acontecido, já que o objetivo do veículo é liquidar os seus próprios ativos.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL