Nasceu na Madeira em 1930 e ficou conhecida sobretudo pelo trabalho com a sombra. Lourdes Castro fez com René Bertholo e com outros artistas a revista “KWY” em Paris, onde viveu durante 25 anos. Deu movimento à sombra através do teatro, fez livros de artista, conta com obras suas nas colecções mais importantes do mundo. E voltou para a Madeira em 1983, com Manuel Zimbro.
Gosta de plantas e de árvores, de budismo e de ironia, de subtileza e de curiosidade. Acha que o mais importante é fazer as coisas sem intenção. Não sai de casa há dois anos e passa muito tempo a pensar na forma como tudo está ligado, como tudo vai nascendo de acaso em acaso.
Aceitou esta entrevista chamando-lhe conversa e deixou que durasse duas tardes. Depois de um passeio pelo jardim, despediu-se com um raminho aromático que dá sorte aos viajantes.
Teve uma infância com muito espaço?
Muuuuuito espaço. Quando penso nisso… A infância é o que conta. Tem filhos, não é? Gosto muito de crianças. Mas ou era isto que queria fazer ou então… Quero dizer, sabia lá o que queria. Fui fazendo. Mas tive uma infância com muito espaço. Ao pé do mar. Com calhau, com vinha, com cana-de-açúcar que a gente chupava. Assim de correr à vontade.
De tomar banhos no mar.
Sim. E em terra havia muitas bananeiras. Era uma propriedade grande. Igualzinha aqui a esta onde vivo, no tamanho.
Junto à Praia Formosa, aqui na Madeira?
Sim. Por cima da rocha. De lá vê-se a praia. O meu pai gostava de nadar e a minha mãe já nadava, também. A avó é que não nadava. Podia correr à vontade. Sabiam que ou estava aqui ou estava ali.
Estudou no Colégio Alemão aqui no Funchal?
Sim, mas tenho de contar desde o princípio. A minha avó – que está na capa do livro A Praia Formosa [- photografias do meu avô Jacinto A. Moniz de Bettencourt] foi a primeira aluna do Liceu do Funchal. A primeira rapariga. Ensinou-me a ler e ensinou-me Inglês, tinha os métodos e aquelas coisas todas. Também sabia Francês.
Como se chamava?
Ana Laura Estela Magna. E pergunto-me: “Quem era esta menina que em mil oitocentos e tal foi para o Liceu?”. Bem, a avó eu conheci. Mas quem foram os pais desta avó? Foi a primeira aluna e ia acompanhada da avó. Com uma saia comprida e apertadinha, blusa branca e chapéu. Tinham duas cadeirinhas e uma mesinha ao pé do professor, os rapazes ficavam atrás. Assistiam assim as duas às aulas todas. Era com certeza brilhante. Depois fez uma escola e andou muita gente nessa escola. Era fora de série. Quando chegou a nossa vez, o Colégio Alemão ainda não existia há muito tempo e a minha avó disse: “Os pequenos têm de ir para a Escola Alemã.” Lá em casa, a avó é que dava o sinal em tudo. “Têm de ir, porque as escolas alemãs e o método alemão dão muita organização.” Havia umas primas que estavam numa escola francesa de freiras, mas ainda não falavam Francês… Nós quando chegávamos à escola só falávamos Alemão. Aprendi tudo em Alemão.
Depois veio a II Guerra Mundial e o Colégio fechou. A Lourdes continuou a estudar Alemão com uma professora alemã.
Sim. O marido da professora era botânico. Andaram pela América do Sul à caça de borboletas e de plantas. Ele desenhava e pintava muito bem, minuciosamente. Eram os dois alemães e foi com ela que continuei a aprender. Aliás, estive para ir com uma professora à Alemanha pouco antes. Mas começou a guerra em 1939 e já não pude ir.
As aulas de Alemão com a professora particular eram no Funchal?
Sim, a professora morava na Ajuda, perto do Lido. Tinha uma casa cheia de plantas, uma papaieira, papagaios trazidos do Equador… Esteve no Chile, no Equador e por aí fora. Veio mesmo no início da guerra. Estavam num barco alemão e tiveram de ir para outro, porque o deles afundou-se. Vieram os dois para a Madeira e depois ela ficou cá sozinha. O marido morreu.
Foi ainda na Madeira que teve acesso ao livro de Eugen Herrigel Zen e a Arte do Tiro com Arco. Como lhe chegou às mãos?
Essa professora tinha uma sobrinha na Alemanha, que um dia lhe mandou o livro do tiro ao arco. Tinha acabado de sair em Alemão, era a primeira edição. Leu-o e depois emprestou-me. Foi mesmo daqueles livros que dão a reviravolta. Às vezes estou aqui sentada e já não leio muito, leio poucochinho. Mas gosto de pensar nisto de como as coisas se articularam.
Já depois de ler esse livro, foi como uma flecha para Lisboa, para estudar em Belas Artes. O seu pai acompanhou-a na viagem de barco? Era preciso ajudar a menina a instalar-se?
Sim, o meu pai foi comigo. Mas quando cheguei a Lisboa, achei estranho que as minhas colegas não fossem tão livres como eu. Talvez porque aqui na Madeira o meio era pequeno. A gente saía de casa e entrava à noite… Era mais aberto.
Em Lisboa foi viver para onde?
Para casa de uma tia minha de Cabo Verde, que tinha casado com um irmão da minha avó. Era da Praia, da ilha de Santiago. Uma vez vieram a Lisboa um irmão e uma irmã da minha tia que tocavam e que cantavam. E que faziam cachupa.
Foi fácil escolher Belas Artes?
Ainda fiquei aqui na Madeira três anos depois do Liceu, quando já o meu irmão estava lá no Técnico, em Lisboa. O meu irmão sabia que queria ser engenheiro eletrotécnico, como o tio. Eu… Eu gostava de desenhar, de pintar, de dançar. Fazia muito teaaaaaatro. E dançava muito, também. Mas Belas Artes… Eu sabia lá se queria Belas Artes.
O que queria era sair da Madeira?
É preciso sair. Vê-se o mar, vê-se os barcos, depois é preciso sair. Mas ainda estive aqui na Madeira esses três anos, depois do Liceu, a trabalhar num kindergarten – uma escolinha perto do Hotel Savoy, onde estão a fazer aqueles monstros.
“Tive uma infância com muito espaço. Ao pé do mar. Com calhau, com vinha, com cana de açúcar que a gente chupava. Assim, de correr à vontade”
Lourdes Castro
A seguir foi então para Lisboa estudar em Belas Artes.
Sim, matriculei-me em Pintura. Mas era um horror. Aqueles modelos e aquelas coisas. Lá fui fazendo.
No final de Belas Artes, fez umas pinturas que não correspondiam ao que os professores queriam. Como foi?
Já não podia mais com aquilo. Se a gente não pintava corzinha de pele, meio rosa… O mestre de Pintura não aceitava. Pintei a pele dos nus de verde e de azul. Como pintava em casa, comecei a pintar à minha maneira. Já fazia outras coisas. Isto era no Curso Superior de Belas Artes, que não acabei. Porque era preciso fazer seis modelos nus, seis naturezas mortas e mais não sei o quê… Era tudo às meias-dúzias.
Mas os nus é que foram polémicos. O professor escreveu mesmo a giz em cima desses óleos?
Escreveu “Excluído”. E eu deixei ficar. No Curso Superior de Belas Artes, era preciso fazer seis disto e seis daquilo, por nossa conta. E depois o professor vinha avaliar. Em todos, escreveu “Excluído”, a giz. Está correto, o que é que ele podia fazer? Depois perguntei-me: “O que estou aqui a fazer?”.
E meteu-se logo num comboio para Paris?
Nessa altura já namorava o [René] Bertholo, que era dois anos mais novo. Mas não foi assim metermo-nos num comboio e ir logo. Já tínhamos viajado, já conhecíamos a Alemanha. Fizemos muito auto-stop.
Andavam muito à boleia pela Europa?
Sim. Pedia boleia com o René. Tínhamos de estar sorridentes e andávamos pela Europa toda. Não se tinha dinheiro, não se tinha dinheiro nenhum.
O ambiente em Portugal devia ser muito difícil, para quem conhecia outros países da Europa.
Sim, em Lisboa íamos à biblioteca americana para ver as revistas, para consultar livros. Não se tinha dinheiro para comprar livros. Havia o que havia – uma exposiçãozinha aqui, outra acolá. Havia exposições no SNI [Secretariado Nacional de Informação].Fui sempre ver os museus todos. Uma vez na Suíça fui ao Museu do Bombeiro.
Como era?
Havia a farda dos bombeiros e os instrumentos todos. Era muito bonito, mas o que mais me impressionou foi ver coisas que tinham ardido. Uma garrafa de gás que tinha explodido num incêndio. E muitas fotografias. Terríveis. Não era só a pintura que me interessava. Gostava de ver.
Tinha curiosidade.
Sim, a minha avó dizia sempre, quando não sabíamos uma palavra: “Vá ver ao dicionário. Já a ensinei a abrir o dicionário”.
Como era viver em Portugal durante a ditadura de Salazar, quando estava a estudar em Belas Artes?
Sabia-se que era uma ditadura, sabia-se isso tudo. Mas eu estava a estudar e nunca fui de me meter em política. Nunca, nem para um lado nem para o outro.
A sua saída de Portugal não foi um exílio?
Mais depressa foi um exílio cultural do que político. Já conhecíamos Paris, antes de irmos para lá viver. E vivemos antes em Munique, um ano. Já conhecíamos a Europa, os museus todos.
E em Lisboa não se passava nada.
Mas em Paris também não havia nada, ainda não se fazia nada nos museus. Os museus eram mesmo museus.
O que interessava em Paris estava nas galerias?
Sim, era nas galerias. E em poucas, muito poucas. Começou a Denise René, mais outras galerias. Por exemplo, fizemos a exposição da Gioconda e a do guarda-roupa. Pensámos: “E se fizéssemos uma exposição do guarda-roupa?”. E então cada um de nós fazia um guarda-roupa. A exposição foi num atelier fora de Paris que era muito grande. Levou-se para lá as peças todas, levou-se comida… E depois acabava sempre tudo com dança. Levavam um gira-discos e era o que se fazia. Houve uma que se vestiu com o que ia expor. E o que era? Tudo em fecho éclair. A saia… Tudo.
Tinham chegado a Paris no final dos anos cinquenta. Antes casaram-se?
Casámo-nos por procuração, a minha mãe é que teve essa ideia, no Verão. Disse: “Vocês casem-se por procuração, não é preciso fazer festas nem nada”. E assim o René pôde vir e ficar comigo, porque já estávamos casados.
A ideia era o René ir ter onde?
À Madeira. Veio aqui numas férias. E com o Manuel [Zimbro] também me casei. Aí já foi por outra razão, foi a pensar nesta casa. Pensei: “É melhor a gente casar-se, por causa das assinaturas”. Mas ele já foi primeiro do que eu. Foi tão cedo.
Morreu em 2003, com 59 anos.
Sim. O bom é que ficámos sempre todos tão amigos. O René Bertholo esteve aqui em baixo. E eu era a amiga número um da mulher do René, [Elna Voss-Hellwig]. Porque ela era alemã. Era casada antes com um irmão do [pintor alemão] Jan Voss e tinha-se divorciado. Vai-se ver se algum dia se faz alguma coisa como deve ser sobre o René Bertholo. Ele era um bocadinho assim [põe uma mão em forma de gancho]. Não era fácil com as outras pessoas. Chateava-se. Nunca fez uma exposição na Gulbenkian. Mas há-de vir. Cá me arranjo. Desde que o conheci, ele sempre foi de multiplicar. Fez as primeiras serigrafias com um pedacinho de seda. E depois fez a revista “Ver”, em Belas Artes. Foi aí que a gente se enamorou, quando me convidou para participar na revista.
Como foram os vossos primeiros anos em Paris?
Foi muito boa altura para chegarmos a Paris. Em 57 fomos para a Alemanha, em 58 fomos para Paris. Não havia ainda nada, estavam todos a chegar. Conhecemos tanta gente…
Como começaram a fazer a revista “KWY”?
Chegámos a Paris e o René disse assim: “Vai-se fazer uma revista”. E eu ajudei, claro. Era uma carta aos amigos, em vez de se estar a escrever a um e a outro.
Na revista “KWY” havia artistas muito diferentes uns dos outros.
Fazia cada um à sua maneira. Se não fosse o René, não havia “KWY”. Quando se pensa como é que a gente fazia, como deixávamos as provas a secar em cima da cama… O espaço que nós tínhamos – para dormir, para cozinhar e para tudo – era assim um quadradinho. Com um corredor escuro. Era daqueles quartos de bonne [de criada], lá em cima no sétimo andar. A nossa safa é que antes de nós, no quartinho de bonne esteve um canalizador.
Então estava tudo arranjado.
Estava. Quer dizer, ele pôs água. E depois a água ia para o telhado. Na Rue des Saints-Pères, en plein Saint-Germain. Íamos a todo o lado a pé, até à Opéra.
O que aconteceu depois a essa casa?
Ah, agora é moderníssima. É um edifício antigo, em cima fizeram apartamentos nos chambres de bonne, claro.
E o seu trabalho? A sua sombra com o René na parede da casa?
Ah, isso já desapareceu. (risos)
A “KWY” era uma revista internacional?
Era internacional porque estávamos num sítio que era assim. Tenho aqui o catálogo da primeira exposição do Yves Klein e umas investigadoras já me disseram que é “introuvable“. Tenho aqui coisas introuvable dessa gente toda.
“KWY” significava “Ká Vamos Yndo”?
Não, isso foi o que disseram depois. O René queria ter as três letras que naquela altura não havia no alfabeto português: o K, o W e o Y. Isso do “Ká Vamos Yndo” foram coisinhas que foram dizendo.
Dava para dormir nessa casa? Com a serigrafia, com as provas a secar sobre a cama?
Depois tirava-se à noite. (risos) Ninguém tinha nada, ninguém tinha dinheiro e fazia-se tudo. O Manuel [Zimbro] dizia que era o estilo “com-o-que-há”. Mesmo esta nossa casa aqui na Madeira tem muita coisa ao estilo “com-o-que-há”. E parece-me que talvez hoje isso esteja a voltar, em Portugal.
O dinheiro nunca foi uma motivação para a Lourdes?
Não. (risos) Nunca foi. Nunca soube fazer contas. Mas sempre vendia uma coisa de vez em quando. E quando vendia, dava para umas coisinhas. Depois tivemos a bolsa [da Gulbenkian]. Quem teve primeiro a bolsa foi o René, depois eu. Em Berlim depois tive bolsa para o teatro [das sombras]. Fizemos a “Ligne d’Horizon”. Estivemos lá quase um ano e nem era preciso fazer relatório: “Se vocês quiserem, podem fazer um relatório. Ou uma exposição, se vos apetecer”. E nós fizemos exposições, o René e eu. E fizemos um espetáculo na Akademie der Künste, foi muito bom.
Em Paris, a Lourdes, o René e outros artistas portugueses jovens tiveram uma relação próxima com os pintores Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes?
Tivemos, naturalmente. Mas uma vez alguém escreveu que a gente chegava a Paris e que a Vieira da Silva já nos dava galeria, já nos dava tudo… Não, não era assim. Tem de se ir devagarinho. Fomos conhecendo. E ela era muito nossa amiga. Não de todos, foi conforme. O René e eu éramos um casal e sentiam isso, que éramos um casal mesmo. Trabalhávamos os dois juntos. Isso dava uma certa estabilidade. Porque por exemplo o Escada tinha uns rapazes, o outro tinha umas namoradas, depois o Christo lá um dia se casava ou não se casava… E nós estávamos ali quietinhos. Portanto, havia uma confiança. A casa da Rue des Saints-Pères era pequenina, mas era um lugar seguro.
Em Paris era habitual a Lourdes fazer uma panela de sopa para o grupo da “KWY”, como se conta? Comiam juntos?
Não, não comíamos. Nem houve grupo, nunca. Como é que hei-de dizer direitinho? Nós íamos convidando um, depois outro: “O Escada – se quiser – faz esta capa”. Mas houve pessoas de uma galeria de Itália que nos perguntaram: “Querem fazer uma exposição aqui com o grupo da revista?”. Ficou assim: “o grupo da revista”. Mas não éramos grupo nenhum. Cada um estava para o seu lado e fazia as suas coisas. E ajudava. O que aconteceu depois é que a edição era cada vez maior e era preciso colar, agrafar ou não agrafar, pôr a secar, mandar pelo correio para os assinantes…
“Uma vez alguém escreveu que a gente chegava a Paris e que a Vieira da Silva já nos dava galeria, já nos dava tudo… Não, não era assim”
Lourdes Castro
A “KWY” começou por ter quantos exemplares?
Começou com 50 ou 60, até chegar aos trezentos. Mas, petit à petit, só o Christo e o Jan é que ajudavam. O “KWY” só teve dois números com o Costa Pinheiro, com o Escada, com o João Vieira e com o Gonçalo Duarte. O João Vieira gostava de contar histórias – os amores e mais isto e mais aquilo – e a gente também gostava de ouvir. Mas estávamos ali para imprimir, para limpar sedas… Dá muito trabalho fazer tudo à mão! Bem, do Gonçalo nem se fala. O Gonçalo sentava-se. É terrível ver quando as pessoas se sentam e enrolam as pernas. Ui, é uma maneira de sentar… E então um dia eu disse: “Vocês são lindos e vamos ficar sempre amigos. Mas agora o “KWY” é o René, a Lourdes, o Jan e o Christo. Que são os que ajudam”. O Jan e o Christo vinham sempre. Dos doze números, só dois é que fizemos com todos. Portanto, o grupo existiu e não existiu. Foi só para fazer essa exposição em Itália e mais outra em Paris: “Le soleil dans la tête”, que era do grupo “KWY”. Mas, “grupo “KWY”” foi muito pouco. Foi só para se dar o nome às exposições.
Ainda não falámos de sombra.
Ah, estou sempre a desviar. Sou muito organizada e desorganizada a falar.
Desvie à vontade. Descobriu o encanto da sombra a partir das primeiras serigrafias de objectos que fez em Paris?
Isso foi a sombra no papel. Mas já tinha feito contornos de pessoas. Às vezes estou aqui a ver os filmes.
Os filmes da sua vida?
Sim, um bocadinho. Uma vez estava aqui de férias e fui ver a casa nova de uns amigos, que ia ser pintada. Era perto do Casino Park, uma casa do [Jorge] Sumares, que escrevia muito bem. E o Jorge disse assim: “Vocês podem grafitar a parede, depois vai ser tudo pintado”. Estávamos ali cinco ou seis amigos, talvez. Íamos jantar. E comecei a fazer o desenho dos amigos que estavam lá.
Nas paredes? Foi um dia inaugural?
Sim. Depois isso foi caiado e acabou-se. Quando já morava em Paris, ficávamos três meses de férias na Madeira. E foi cá esse dia inaugural. Mas em Paris já tinha começado a descobrir as sombras de objetos nas serigrafias.
Mas ainda não com as formas das pessoas.
Não. Mas ali havia pessoas e então lembrei-me de fazer as sombras das pessoas na parede. Foi antes de saber histórias sobre [o escritor Adelbert Von] Chamisso e as sombras. Mas acho que é muito natural. Estava lá aquela parede toda para fazer coisas. E fiz. Depois, muito mais tarde, uma amiga da Alemanha mandou-me o livro do Chamisso. Há coisas que acontecem assim, sem a gente querer. Depois é que nos lembramos de que lemos este ou aquele livro. Outro dia estava a pensar que havia aqui na Madeira uma perceptora inglesa dos filhos de uma amiga da minha mãe, que tinha pequenos como nós. A perceptora inglesa tinha estado na Índia e deu-me um livro. Disse-me que eu tinha de o ler. Era a história do Buda em verso, em Inglês.
Ainda muito cedo.
Mas a questão é que eu li. Às vezes a gente lê ou faz coisas e depois pronto, passou. Mas são esses toquezinhos aqui e ali que nos vão formando. Pergunto sempre: “O que somos nós senão um agregado de mil coisas?”. Não há “eu”, somos tudo à la fois. Às vezes pergunto: “Mas foste tu que escolheste o sítio para nascer? Foste tu que escolheste o pai e a mãe?”. Não, a gente tem o pai e a mãe que tem. Nasci aqui, mas não fui eu que escolhi nascer aqui. Nasci. O que somos senão um agregadozinho no meio disto tudo? Somos tudo e somos nada. E isso é fundamental para a gente não estar agarrada a nada. As pessoas pensam que são qualquer coisa. Mas depois vão para a escola e aprendem. E depois há um tio ou uma tia, há a paisagem que também entra em nós. E o que vai entrando também é conforme o que já temos dentro. É assim que a gente se vai formando. E somos isto que está aqui, mas não somos nada de especial. Somos um agregado de causas e efeitos. Vamos construindo-nos.
Teve uma educação católica aqui na Madeira? Houve mesmo um dia em que decidiu faltar à missa para ir ver o nascer do sol?
Sim. Fiz a primeira comunhão e o crisma e tudo. Depois há coisas que acontecem, está tudo ligado. Fui das Escuteiras de Portugal, desde pequena. Fazia-se acampamentos e a chefe era muito boa, Carolina da Rocha Machado. Fomos para as Canárias, porque íamos dançar. Sei os passos todos das danças. Do fandango sei tudo: tan-tan-tan-tarara-ra-ra… Dançávamos muito.
Foi a sua primeira viagem fora da Madeira?
Sim, fomos de barco. Mas no dia seguinte à chegada, quem é que se levantava? Era preciso levantarmo-nos cedo, mas estava o sol a nascer e eu disse: “Não vou à missa, vou ver o sol a nascer”. A chefe das escuteiras depois foi minha madrinha, temos uma grande compreensão. E quando eu lhe disse que não iria à missa, respondeu-me: “Não tem importância”.
Para a Igreja católica isso era um pecado, isso de ficar a ver o sol em vez de ir à missa.
Sim, pois era. Gosto de mostrar livros budistas a um moço que é meu afilhado, com quem tenho muito boa relação. Não sou budista, mas tento compreender as coisas. Sou católica porque sou baptizada, tenho o nome de Lourdes… (risos) Nasci aqui… Pourquoi pas? Quero dizer, não vou fazer guerra. Tenho os pais que tenho, tenho esta casa, este sol, estou aqui na Madeira… Já desfiz o “Lourdes Castro” em “Lourdes” de Nossa Senhora de Lourdes e “Castro” de Fidel Castro, num dos meus cadernos. Agora já não se fala no Fidel.
Quando escolheu o seu nome artístico pensou logo nisso?
Não, nunca pensei em nome artístico. Era o mais curto. Não estou apegada a nada e sinto-me muito livre. Mas é preciso pouco a pouco a gente perceber por que é. Não sou nem budista nem católica.
Fez o Anjo de Berlim, que está em Lisboa na Capela do Rato.
Sim. E agora o [padre José] Tolentino [Mendonça] não faz nada sem o Anjo de Berlim, usa-o num cartão de visita. Tenho muitas boas conversas com o Tolentino. Ele lá percebe. Gosto de saber o que é o budismo e acho que é muito inteligente. Porque não há hierarquia. Quero dizer, não estou na Índia… Porque lá também têm os seus santinhos todos. E eu tenho aqui o Santo António e gosto muito do meu Santo António e doutros santos. Acho bonito. Mas não estou agarrada às coisas, não sou isto nem aquilo. Não sou nada, sou isto tudo. Não sou budista nem sigo nada, mas o budismo é muito claro. O que está explicado é muito inteligente: não morremos, transformamo-nos.
O Manuel Zimbro era muito próximo do pensamento budista.
Sim, mas nunca foi monge. Talvez o Manuel fosse mais próximo intelectualmente do que eu. Porque sou mais confusa. Mesmo a falar, ele era mais rigoroso. E escrevia muito bem. E o Manuel era muito amigo do nosso meste, Hôgen [Yamahata]. Mas eu nunca fui a retiros. Porque o próprio mestre dizia: “A Lourdes não precisa de ir”. Porque ele sentia. Era muito amigo, quando vinha aí. Mas agora… Ele tem a mesma idade que eu… Eu tento saber e gosto de perceber. Empresto livros sobre budismo para as pessoas perceberem o que é. Há coisas que são mais simples no budismo. O que se inventou no catolicismo são histórias. A Bíblia e o “vai para o Inferno”… Bem, agora já não se está nessa. Já acabou o Inferno e isso tudo.
Mas então nós não morremos, transformamo-nos?
Sim. Mas tudo se transforma. É preciso ir ver as plantas. Viramos terra. É tudo transformação. É como naquela frase [de Antoine Lavoisier]: “Nada se perde, tudo se transforma”. Uma árvore pode cair ao chão e depois o que fica? O musgo. E depois vira terra. Podemos virar terra, mas não desaparecemos. Para onde é que vai? São tudo invenções. “A eternidade” e mais aquilo e mais aqueloutro. Digo sempre ao meu ajudante no jardim: “Vamos ajudar o satélite. Vamos ajudar o planeta”. Mondar a erva e regar é ajudar o planeta.
Qual é a história do anjo de Berlim?
Foi num Natal que passámos em Berlim. Estávamos a morar num atelier muito grande, na Mariannenplatz. Tínhamos duas janelas muito grandes, de onde víamos a praça. Na Véspera de Natal nevava, estavam os carros todos cobertos de branco. E começámos a ver lá à frente as luzes dentro das casas. E eu disse: “Ó Manel, a gente tem de fazer qualquer coisa.” (risos) Foi assim: “Vai-se fazer um anjo”. Depois houve uma amiga – a Monika [Hasse] – que viu a janela com o anjo, gostou muito e tirou uma fotografia. O Almeida Faria nessa altura estava em Berlim e escreveu também um texto bonito sobre o anjo de Berlim. O Manuel é que pôs a luz e depois – antes de os outros acenderem – nós acendíamos. Era assim uma troca. De noite tinha a luz acesa. Era uma lâmpada normal, com papel e fita gomada. A coincidência é fantástica. Porque a nossa janela em Berlim tinha aquele oval e a capela do Rato também. Porquê? Quando o Tolentino me pediu para fazer alguma coisa para a capela do Rato, tinha de ser mesmo aquilo. Lembrei-me que já tinha o anjo. Fazer as coisas sem intenção é do mais importante que há para mim. Porque não se está a querer nada.
A Lourdes gosta muito de dizer que não faz arte.
Nem faço arte nem deixo de fazer. Sim, chamem-lhe arte. Com os nomes não me estorvo. Podem dizer que é arte e que sou artista, não me abala. Diz-se “arte” para as pessoas saberem. Assim como temos um nome, para nos chamarem. Pois, tem de se dizer que é arte e que não é arte.
Na casa da Rue des Saints-Pères a vossa mesa tinha sessenta por sessenta centímetros. Convidavam muitas pessoas para jantar?
Sim, ficava-se em pé. Ou numa cadeirinha ou sentavam-se numa cama. Eu tinha um prato que era o Bacalhau à Mao. Era no tempo do Mao [Tsé Tung].
“Nem faço arte nem deixo de fazer. Sim, chamem-lhe arte. Com os nomes não me estorvo. Podem dizer que é arte e que sou artista, não me abala”
Lourdes Castro
Era um bacalhau vermelho?
Não, mas tinha de ser simples. Na nossa cozinha só cabia uma pessoa e o fogão era ao pé do duche feito pelo canalizador que tinha vivido lá antes. Quando eu estava no duche e havia qualquer coisa ao lume a ferver, chegava lá com a mão e desligava. Só havia fogão, nunca tive forno senão em Berlim e aqui no Caniço. Para fazer o Bacalhau à Mao eu preparava tudo antes. É muito bom. Cozia o bacalhau, desfiava-o. Cozia semilha…
“Semilha” é como se diz batata aqui na Madeira, não é?
Sim, as primeiras sementes das batatas que vieram eram espanholas. E estava lá escrito semilla. É por isso, ficou o nome.
E o que dava o nome ao Bacalhau à Mao?
O que dava o nome à coisa eram os champignons chinois. Ce ça qui fait o Bacalhau à Mao.
Era ao pé dessa casa que via todos os dias um verso de Vincent Muselli escrito num prédio? “Cloue à jamais la joie au front de ta demeure”?
Sim: “Grava para sempre a alegria na fachada da tua casa”. Estava escrito mesmo abaixo das telhas, num prédio ao lado do nosso. Um dia ao sair de casa reparei naquilo. Depois, todos os dias lia aquelas palavras.
Parece um lema de vida.
E é, quand tu pense… Pourquoi pas? Gosto muito do Pedro Proença. Uma vez ele disse-me: “Ah, estás sempre a rir!”. E eu respondi-lhe: “Pois é, já chorei tanto que agora rio. É a mesma coisa”.
Foram 25 anos em Paris, depois veio morar para a Madeira em 1983. Porquê?
O Manuel queria vir. Queríamos ter um jardim e ver o mar todos os dias, estávamos cansados de Paris.
Mas em Paris passava-se tudo, do ponto de vista artístico.
E aguentar lá? Era num sétimo andar sem elevador. Eu e o René estivemos sempre nessa casa. Depois conheci o Manuel e já tivemos uma casa maior, porque fazíamos o teatro de sombras. O René é que ficou lá na Rue des Saints-Pères, com a Elna. E eu e o Manuel arranjámos outro sítio. Comecei o teatro de sombras ainda na Rue des Saints-Pères. Foi o René que me fez a primeira máquina, depois o Manuel fez-me as cores e isso tudo.
Quanto tempo demoravam a criar uma peça do teatro de sombras?
Um ano. Porque é do nada. É como um desenho. É engraçado que eu no teatro de sombras tinha de fazer tudo mais devagar. Senão o público não conseguia ver. É o que me está a ajudar agora.
Esse treino está a ajudá-la agora em quê?
O que me safa é parar. Porque estou aqui em casa e faço tudo muito devagar. É a única safa, para não tomar remédios. (risos)
É voltar ao teatro de sombras.
Sim, sei o que é parar. E às vezes digo: “Vá Lourdes, faz uma coisinha de teatro de sombras, não te chateies”. Porque é difícil, nem sempre é divertido estar assim como eu estou. Mas seja de que maneira for, não é sempre muito fácil respirar… Respirar como deve ser.
É difícil em qualquer altura da vida.
Em qualquer altura da vida e para qualquer um. Seja sozinho ou acompanhado. É sempre difícil. Não é como aquelas palavras que se inventa.
Na sua vida, há um antes e um depois da morte do Manuel?
Sim. É muito difícil. Mas fui lendo, respirando, pensando, até perceber outras coisas. E nisso o budismo ajuda muito.
O Manuel era catorze anos mais novo?
Era, era. (risos) E foi tão cedo. Éramos um, não éramos dois. Em tudo o que fazíamos, como o teatro das sombras. Mas depois consegue-se ultrapassar certas dificuldades, consegue-se perceber que ele está aqui. Não desaparece. Às vezes há coisas para fazer e sinto em mim uma ajuda muito forte, a coisa torna-se fácil.
Vamos falar de outra dificuldade. Do ponto de vista prático, como era trabalhar com plexiglas?
Foi complicado. Mas não fazia sentido pintar a sombra em tela: tudo branco e depois o tracinho… Porque eu queria um material menos material. Poderia ser vidro, mas parte-se. Comprei umas plaquinhas de plexiglas e experimentei pintá-las. A partir daí pensei: “Tem de ser em plexiglas”. Quem me ajudou foi um amigo que já estava na galeria da Denise René, o Pol Bury. Íamos muito a casa dele e ele disse-me: “Vens comigo e trazemos isso no tejadilho do carro. Depois eu corto lá em casa e trago-te aqui”. Foi assim, até que vendi qualquer coisa e tive o dinheiro para comprar a máquina elétrica. Mas mesmo assim c’est fou, quando se corta o plexiglas. Traz sempre um papel por cima, para proteger. E era em cima desse papel que eu decalcava o meu desenho, para seguir a linha com a serra. Só que eu seguia a linha e – com o calor da máquina – o plexiglas colava-se atrás, onde já tinha cortado. Comecei por fazer uma linha pequenina e demorei meia-hora. Apetecia-me chorar… Até que um dia voltei à loja para comprar lâminas novas. E estava lá outro cliente que me aconselhou a usar um bocadinho de óleo de máquina de costura: “Antes de cortar, deite o óleo em cima do traço feito no papel. Vai ver que é um instante”. E assim foi. Às vezes é o acaso. Era tudo tão simples, era tudo tão pouco. Mas eu queria sempre fazer tudo muito bem, o melhor que podia. Uma vez o Pedro Tropa – na exposição de Serralves – disse-me: “E pensar que tu cortaste isto tudo”… Pois é, mas não foi tudo de uma vez. Foram anos.
A seguir ao plexiglas, passou a fazer sombras bordadas em lençóis. Como foi essa mudança?
Eu fazia sempre sombras sentadas ou a ler ou a fumar…. E lembrei-me que gostaria de fazer uma sombra deitada. Mas uma pessoa não se deita num plexiglas. A gente deita-se é na cama, em cima de lençóis. As minhas associações de ideias são sempre muito simples, do mais simples que eu possa fazer.
E porquê desenhar as sombras em bordado?
Em bordado porque era num lençol. Não ia cortar o lençol.
Ao contrário do que fazia com as sombras em plexiglas, nas sombras feitas em lençóis optou por não dizer o nome das pessoas. Porquê?
Porque como era num lençol, muitas não estavam vestidas. Aliás, mesmo no plexiglas eu nunca revelei logo os nomes das pessoas. Porque senão seria sempre aquela coisa: “Ah, é mesmo o nariz dele. Está parecido. Não está parecido”. Depois de muitos anos, nas sombras em plexiglas pus o nome de quem era. Eu tinha lençóis onde fiz algumas sombras de pessoas nuas. Eram amigos muito íntimos, ninguém se chateava e correu tudo muito bem. Não valia a pena pôr o nome, não me adiantava nada. Porque quando se põe o nome, depois as pessoas procuram a identidade e as semelhanças.
Fez a sombra do galerista Edouard Loeb. Como foi?
Era irmão do Pierre Loeb, galerista da Vieira da Silva. O Edouard tinha a galeria e a casa dele em Saint Germains, perto da nossa casa. Um dia veio lá a nossa casa jantar, com o [Jesús Rafael] Soto, naquela mesinha pequenina. O Bacalhau à Mao ou qualquer coisa assim. O Soto trouxe viola e a gente lá ficou a conversar. O Soto às tantas perguntou se eu já tinha mostrado alguma peça ao Edouard. Eu disse que não. Havia sempre aqueles artistas jovens que andavam carregados com pastas, para mostrarem trabalhos nas galerias. Nunca fiz isso. Nem o René fez. O Soto disse-me para mostrar qualquer coisa ao Edouard e eu tinha lá alguma coisa que mostrei. Nesse dia ele comprou-me um livro, que era todo ainda em prateado. Da minha época do prateado.
Pintado com tinta de alumínio.
Sim. E então eu disse-lhe: “Edouard, se quiseres eu vou desenhar a tua sombra”. Já tinha feito outras sombras, mas o Edouard estava ali… O Edouard e o irmão eram dois senhores. Eram os dois altos e andavam sempre de fato completo e chapéu. O Edouard punha aquele chapéu e eu podia estar a sair dos Correios e se o visse de costas, a andar por Saint Germains, via logo quem era. Por isso quando fiz a sombra do Edouard, não precisei de fazer o nariz nem nada. Foi só ele com o chapéu posto. Disse-lhe: “Põe o chapéu, que tens de ficar com o chapéu”. Foi num instante. Ele sentou-se junto à parede e eu fiz a sombra. Ele gostou muito e teve sempre essa sombra em casa, à entrada. Era um galerista com artistas como Max Ernst, [Alexander] Calder, Miró. Nas festas estávamos todos juntos e eu falava as línguas todas.
Conseguiu a independência económica através da arte?
Sim, vendia coisas. Uma ou outra. E depois nós estávamos num sítio muito pequenino e pagávamos pouco de renda. Nós é que fazíamos tudo, nunca tivemos ninguém. Disse agora a uma rapariga que vem cá passar o aspirador pela casa uma vez por semana: “É a primeira vez que tenho alguém aqui a ajudar”. Tínhamos o mínimo de tudo. E o René também fazia tudo. Ia buscar as telas, tratava de tudo… Sempre dizíamos, o René e eu, que quando um de nós expusesse primeiro, a festa seria dos dois. E foi sempre assim. Nunca nos separámos nessas coisas. E com os outros amigos também era assim.
Como começou a fazer livros de artista?
Eu faço sempre álbuns. Tenho um da Quinta do Monte, onde vivi durante cinco anos com o Manuel quando viemos para a Madeira em 1983, antes de termos esta casa pronta. Tenho um de quando fui à Turquia. Tenho o álbum da Grécia… Sempre fiz estes álbuns para mostrar à minha mãe, porque ela gostava muito de ver. Foi assim que comecei. Mesmo as fotografias de Lisboa e das exposições, colava-as numas folhas e quando chegava à Madeira mostrava à minha mãe. Por isso tenho esta coisa de fazer livros.
Qual é a história do “Grande Herbário de Sombras”, que fez durante umas férias aqui na Madeira no Verão de 1972?
Sim, há sempre uma história. Uma vez fui ao Louvre e havia uma exposição do herbier de Jean-Jacques Rousseau. Era uma daquelas salas do Louvre que no meio tinha um pedestal. Em cima havia um livrinho aberto – um dos herbários de Rousseau, com as plantinhas todas secas. E de lado tinha um barbante, com o resto do herbário reproduzido em fotocópia. Nas paredes havia umas gravuras sem muito interesse. Vi aquilo, fiquei desconsolada e pensei: “Então fizeram um alarido e é só isto”. Mas foi bom ver, porque me perguntei: “Porque é que eu não faço um herbário?” Chamei-lhe “Le Grand Herbier d’Ombres”. Porque aquele da exposição do Louvre era tão pequenino, tão insignificante… Tenho o livro do Jean-Jacques Rousseau em que fala dos herbários. É muito bonito, mas a exposição não tinha graça nenhuma. E então quando vínhamos de férias de Paris, ficávamos na casa da Praia Formosa. Íamos sempre almoçar a casa da tia ou a casa da minha mãe. E depois ia-se à praia. Tínhamos tempo, não cozinhávamos. Era uma casinha pequena. Tinha um quartinho de dormir, um banco exterior em pedra. E muitas mangueiras, bananeiras, cana-de-açúcar, magnólia, aquelas coisas todas. Comecei a fazer o herbário.
“Não corro para mostrar às galerias. Nunca corri. Mostro assim a um ou outro que vem cá e depois guardo. Não estou à espera de nada”
Lourdes Castro
Cem plantas sobre papel heliográfico.
Sim, ainda havia papel heliográfico. Agora já não há. Foi o René que disse: “Lourdes, e se tu fizesses em papel heliográfico?” Era para cópias de arquitetos. Faziam o desenho em papel vegetal e depois copiavam com luz elétrica, no atelier. Se virmos as provas antigas dos desenhos de arquitetura, vemos que são azuladas ou acastanhadas. Era a cor do papel heliográfico. Mas isso acabou, agora faz-se de outra maneira. É tudo digital.
Comprei aqui na Madeira esses rolos de papel em azul escuro, em castanho e em roxo – havia essas três cores. E fui buscar as plantas que queria.
Eram todas da Praia Formosa?
Quase todas. Há algumas que eu trouxe da serra, de algum passeio. Mas se olharmos à volta, há ervas que nunca mais acabam. Então comecei a fazer… Punha o papel ao sol com a planta em cima e bastavam segundos, não chegava a um minuto. Tinha um quarto todo escuro onde ia pondo os desenhos sobre a cama. E depois era preciso passar em vapor de amoníaco, para aquilo não desaparecer. Tinha uma travessa antiga com amoníaco, por onde passava as folhas. E foi assim que eu guardei, naquele papel. Depois é que foi impresso, com o Manuel Rosa [em 2002, na Assírio & Alvim]. Ficou muito bem, vou mostrar-lhe. Esta planta veio mesmo lá de casa, é cabrinha. Este já é da serra, é uveira.
Tem agora muitas destas plantas a crescer aqui no jardim?
Sim, tenho. Das mais bonitas são estas, da videira com cachos de uvas. Claro que não trouxe o galho porque não o queria cortar, tendo uvas. Levei o papel até lá. Isto aqui é batata-doce e isto aqui é uma raupe, como se diz em Português? É uma lagarta da batata-doce. E aqui é o traçado da lagarta, estava um dia muito enublado e naqueles segundos ela fez um percurso. No Mónaco compraram isto. O que emprestam a outros museus e o que está exposto [no Nouveau Musée National do Mónaco] são cópias litográficas, porque os originais estragam-se com a luz. A esta chamo folha do Matisse. Esta é a folha de bananeira. Ah, isto aqui foi para gozar. Como eram rosas, pus assim as minhas mãos. Ficou mesmo kitsh. Esta é com flores de papel. É que eu gosto sempre de gozar, no meio das coisas todas.
Há um lado de autorretrato neste herbário?
Sim, tudo o fazemos é um autorretrato. Somos nós, sempre. Se o fazemos mesmo naturalmente. Mas foi muito bom fazer este herbário. Depois, levei tudo para Paris. E muitos anos depois aconteceu que se pôde imprimir e ficou um livro.
Antes de ser um livro, o herbário foi exposto?
Não, não foi.
É uma característica de muitos dos seus trabalhos. Passam anos até serem mostrados. Porquê?
Não corro para mostrar às galerias. Nunca corri. Mostro assim a um ou outro que vem cá e depois guardo. Não estou à espera de nada. E depois um dia vem.
Um dia vai haver um Museu Lourdes Castro?
Não, não penso nisso. Se quiserem fazer… Um dia tudo isto será mostrado. Tenho cá as minhas coisas e vai-se ver.
“Eu não gosto do nome ‘velhice’ e então inventei outra palavra que é ‘altitude’. Do alemão alt, idade. Quando se entra em altitude, é assim”
Lourdes Castro
Agora o jardim é a sua obra em curso?
Sim, mas agora o jardim está por aí. Já não tenho força para pegar na mangueira e regar. Não é só ter de andar devagarinho… Eu não gosto do nome “velhice” e então inventei outra palavra que é “altitude”. Do Alemão “alt“, idade. Quando se entra em altitude, é assim.
E esta pega tão bonita? Quem a fez?
Foi a Lourdes. Até sei fazer meias.
Como aconteceu aquilo de estar a dedicar um catálogo ao poeta Helder Macedo e começar a bordar na página do livro?
Somos muito amigos. Quando ia a Londres, ficava em casa dele. Dediquei-lhe um catálogo assim porque estava com a agulha e a linha na mão. Bordei na página e depois vi o que estava no outro lado da folha. E veio daí a ideia de fazer os livros.
Os livros com o avesso do avesso?
Sim, o meu trabalho foi sempre assim. E quando já sabia fazer, já não me interessava. Quando já sabia fazer os lençóis, pensei: “É sempre tudo tão parado”… E fiz o teatro de sombras, para pôr as sombras em movimento. Em vez de ser em cima de um papel, foi fazer teatro. Por exemplo, estou aqui a comer e à frente está um pano onde isto se projeta, porque há uma luz atrás.
Com música?
Com música ou em silêncio, conforme. É engraçado que nos diapositivos que a Catarina [Mourão] arranjou [para o documentário “Pelas Sombras”], a cor era mesmo aquele rosa-fluorescente. Eram cores muito vivas. Usávamos plásticos fluorescentes sobre a lâmpada que projetava as sombras. As coisas não desaparecem, transformam-se. A Catarina telefonou-me um dia e disse-me: “Chamo-me Catarina e gosto muito de fazer filmes. E gostava muito de fazer um filme consigo”. Contou-me que quando era pequena a mãe trabalhava na Gulbenkian. E um dia viu o teatro de sombras e ficou tão impressionada, gostou tanto que foi crescendo e ficou sempre com aquilo dentro. Mais tarde fez comigo o filme e acho que é bonito isto de as coisas na vida se irem transformando, irem dando outras. Continua-se a respirar. No fundo é respirar, respirar a sua respiração. Há uma coisa que gosto muito de dizer aos pequenos e aos grandes também, é uma frase pequenina de um sábio. Há coisas que nunca saem de dentro de ti, como esta frase que tem mais de mil anos: “Caminha como o teu coração te leva”. Não é “para onde ele te leva”. É “vai à tua maneira”. É “segue à tua maneira”.
É o seu lema de vida?
Não, não é. Tenho muitos, como: “Grava para sempre a alegria na fachada da tua casa”. Mas há momentos em que se está assim mais deprimido e é preciso pensar: “Caminha como o teu coração te leva”. E eu acho que tenho feito isso, tenho feito à minha maneira. A arte e a casa e o jardim e mais isto e mais aquilo, é tudo respirar. É respirar à sua maneira. Não é o caminho, porque isso depois, o caminho… Como é que a gente respira?
- TEXTO E FOTOS: João Pacheco
- Texto originalmente publicado na “Revista E” a 31 de agosto de 2019
- Expresso, jornal parceiro do POSTAL