Manal Makkieh tem 23 anos, é refugiada palestiniana no Líbano e em 2020 foi aceite num mestrado de Serviço Social com Famílias e Crianças no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) através do Programa Erasmus Mundus. Depois de um ano de pausa por causa da pandemia, em que os programas de intercâmbio estiveram parados, Manal pediu em maio de 2021 à embaixada de Portugal em Chipre, a que trata de assuntos referentes ao Líbano, que lhe fosse emitido um um visto de estudante de longa duração. Ainda não o recebeu. No fim de outubro perde a vaga e o financiamento.
“Da embaixada em Chipre dizem-me que não podem fazer nada sem a luz verde do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas eu já liguei tanto para esse serviço como para o Ministério e de lá dizem-me que a questão é com a embaixada”, explica. A embaixada em Chipre disse ao Expresso que conhece o caso mas que, “em virtude de exigências colocadas pelos serviços em Portugal sobre este caso que ultrapassam a embaixada”, as perguntas teriam de ser dirigidas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Já fonte do SEF, organismo que não emite vistos mas é consultado para avaliar os documentos dos proponentes a vistos e redigir um parecer para ajudar o MNE a tomar a decisão, disse que o nome de Manal não aparece nos seus registos, de todo. O MNE não respondeu aos pedidos de esclarecimento do Expresso até à hora de publicação deste artigo.
O mestrado em que Manal se inscreveu é lecionado não só em Portugal como também na Suécia, na Noruega e no Uganda e tem semestres previstos em todos os países. Pedro Vasconcelos, diretor do mestrado em Portugal, diz ao Expresso que “há muito que esta aluna deveria ter recebido o seu visto para poder vir estudar em Lisboa”. Como tal não se verificou, “esta situação, a prolongar-se, colocará em risco a sua continuidade no programa de estudos, bem como a atribuição da bolsa da União Europeia”. “De facto, esta situação de indefinição não poderá prolongar-se para lá do final deste mês”, acrescenta. Segundo o mesmo responsável, “todos os restantes alunos do mestrado já se encontram em Lisboa”. Manal é recipiente de uma bolsa da Comissão Europeia no valor de €47.000 para os dois anos do mestrado (que também cobre propinas).
Entretanto o Bloco de Esquerda já enviou, através da via parlamentar, uma pergunta ao Governo sobre o caso de forma a obter esclarecimentos sobre o que sucedeu.
“ERA BOM QUE O APROVEITAMENTO ACADÉMICO CONTASSE MAIS QUE A NACIONALIDADE”
Nascida no campo de refugiados de Medyen, em Bar Elias, a 15 quilómetros da fronteira com a Síria e a 50 de Beirute, a jovem diz-se desiludida com os atrasos e com a burocracia. “Estou bastante desapontada, apesar de habituada à vida difícil de palestiniana porque possivelmente não vou conseguir o visto a tempo, mas não sou a única a passar por isto. Estes atrasos acontecem com muitos palestinianos e era bom que o aproveitamento académicos, os estágios, os artigos publicados, contassem mais do que a nossa nacionalidade aos olhos do mundo”, diz a estudante, que acabou o curso em Serviço Social e Desenvolvimento na Universidade Americana de Beirute e pensava agora continuar os estudos em Portugal.
Um dos problemas para este atraso, tal como noutros casos em que os palestinianos residentes no Líbano não conseguem obter documentos para estudar ou trabalhar fora, é o facto de o país não emitir passaportes a refugiados (apenas documento de viagem, os chamados “laissez passer”). Manal Mekkieh nasceu no Líbano mas não tem nacionalidade, tal como as centenas de milhares de palestinianos que fugiram para o país depois da criação do Estado de Israel (1948) e depois da Guerra dos Seis Dias (1967), tal como a dos sírios que fogem da guerra civil desde 2011. O Líbano não só não é signatário da Convenção de Genebra, que protege os direitos das pessoas em trânsito, como não permite, por exemplo, que um palestiniano ou um sírio acedam a trabalhos de acordo com as suas qualificações. Há cerca de 75 profissões vedadas a pessoas como Manal.
Todos os países que assinaram a Convenção de Genebra (todos os das Nações Unidas e por isso todos os da União Europeia) têm de aceitar este documento, que, apesar de não servir para entrar diretamente num país (em Portugal, por exemplo, serve apenas para um período que não exceda os três meses), tem de ser aceite pelas autoridades dos países da Convenção como documento suficiente para emitir um visto (de estudante, turista, trabalho, etc), tal como se fosse qualquer outro passaporte.
Neste momento, além das razões pessoais que a estudante tem para o seu “estado de nervos permanente e grave”, o próprio Líbano é todo ele um país que parece perto de se tornar um Estado falhado com cortes gerais de energia, cada vez mais pessoas subnutridas e uma taxa de inflação (158%) e desemprego (40%) das mais altas do mundo. A pobreza afeta 50% da população.
“A situação é muito crítica, é desesperante, mas depois houve esta esperança de eu ser aceite num programa para estudar fora, era a minha única oportunidade de sair daqui para depois regressar e continuar os meus projetos na área da ajuda à infância”, diz Manal, acrescentando que não tem intenção de requerer asilo, que já tem – atribuído pela agência da ONU para a Palestina (UNWRA) -, nem de pedir ajudas públicas em Portugal. “É confuso este triângulo, mandam-me para aqui e para acolá mas eu entreguei tudo o que me pediram: desde cartas de recomendação ao currículo, passando pela prova de aceitação no mestrado, visto Schengen para Espanha, certificados de todas as universidades onde estudei, incluindo em Georgetown, nos Estados Unidos. Não sou um elemento perigoso para Portugal.”
Manal recebeu entretanto uma email do ISCTE a prolongar o prazo da sua matrícula, anteriormente fixado para 15 de outubro. “Quero que no futuro, se não eu, outros consigam ir para fora. Se não vão aceitar os nossos documentos não nos deem esse pedacinho de esperança de nos aceitarem num mestrado.”
Notícia exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso