O Postal do Algarve participa da FESTA publicando, ao longo do mês de outubro, uma seleção de textos e poemas relacionados com a temática a cada ano explorada pelos artistas e estudantes envolvidos na realização de cada edição.

(Foto Urgélia Santos / A|NAFA)
CHUVA OBLÍQUA III. Fernando Pessoa. 8-3-1914
“E o que há de mais admirável na obra do Fernando Pessoa é esse conjunto de seis poemas, essa Chuva Oblíqua. SimSim, poderá haver ou vir a haver, coisas maiores na obra dele, mas mais originais nunca haverá, mais novas nunca haverá, e eu não sei portanto se as haverá maiores. E, mais, não haverá nada de mais realmente Fernando Pessoa, de mais intimamente Fernando Pessoa. Que coisa pode exprimir melhor a sensibilidade sempre intelectualizada, a atenção intensa e desatenta, a subtileza quente da análise fria de si mesmo, do que esses poemas-intersecções, onde o estado de alma é simultaneamente dois, onde o subjetivo e o objetivo, separados, se juntam, e ficam separados, onde o real e o irreal se confundem, para que fiquem bem distintos. Fernando Pessoa fez nesses poemas a verdadeira fotografia da própria alma. Num momento, num único momento, conseguiu ter a sua individualidade que não tivera antes nem poderá tornar a ter, porque a não tem.”
Álvaro de Campos
A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Cheops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…
Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!…
1ª publ. in Orpheu, nº 2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915.
NOTA: A FESTA DOS ANOS DE ÁLVARO DE CAMPOS 2019decorre até ao próximo dia 30 de novembro, em Tavira, com poesia, momentos musicais, cinema, jantares vínicos, exposições, entre outros eventos, cujo programa pode acompanhar AQUI.