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Classicista;
Professora da Univ. do Algarve;
[email protected]
Quando era pequena, aprendi com o meu pai e a minha avó materna grande parte do saber da tradição oral que ainda hoje possuo. Tal como eu, muitas pessoas (muitos dos leitores, certamente) tiveram essa sorte, mas o nosso atual modo de vida não ajuda a aproximar os elementos das famílias, não lhes deixa muito tempo para conversas ao serão ou longas tardes a brincar.
Os livros que vos trago hoje são muito bons para relembrar e sugerir algumas ideias divertidas a quem conseguir arranjar um tempinho para estar com as suas crianças: Palavras com que brinco e aprendo. Publicados pela Associação de Pesquisa e Estudo da Oralidade, foram fruto da recolha dirigida por José Ruivinho Brasão, presidente da referida associação, reconhecido investigador e autor de várias coletâneas de saber popular, numa luta meritória para que estes saberes não se percam. Tenho na minha biblioteca dois volumes desta coleção, cada um com uma seleção feita a pensar em determinadas idades: dos 2 aos 6 e dos 6 aos 10 anos. Ambos tiveram a colaboração pedagógica de diversos educadores e professores.
As ilustrações são de Inês Gonçalves. As do 1º volume foram realizadas no âmbito da disciplina Estágio Curricular, da licenciatura em Design de Comunicação da Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve, realizada na Direção Regional de Cultura do Algarve. Mas a designer não deixou a colaboração e o 2º volume mantém a identidade gráfica. Os livros são um objeto muito bonito, revelando as imagens a diversão do texto. Foi esse um dos propósitos explícitos da autora (cf. p.7) e foi muito bem conseguido.
Una, duna, tena,
catena, chaga,
binaga, dica, dopé,
catanobe e um dé
O meu pai contava até 10 desta maneira, quando queria brincar comigo. Durante anos e anos perguntei aos meus amigos e a outras pessoas se sabiam o que era, mas ninguém conhecia. Até que, num outro livro de Ruivinho Brasão (Estão Vivas as Linquintinas Tradicionais em Portugal) encontrei. Fiquei tão contente! E nestes volumes também existem – diferentes, como seria de esperar no saber proveniente da oralidade – versões desta lengalenga, como a que se segue: «una, duna, tena, catena, corrimpim, corrimpão, toleirão, abanão, conta bem, que dez são». A par da lengalenga, adivinha, canção, etc., o autor fornece o maior número de indicações sobre quem lhe deu aquela informação (tais como o nome, local onde vive, ano da recolha, modo como a aprendeu) e sugestões de leitura ou jogo. Também inseriu um encarte, que aqui reproduzo parcialmente, onde apela aos leitores para ajudarem, com o seu saber e com as suas memórias, a «salvaguardar o nosso Património Imaterial na diversidade estética e linguística da oralidade. (…) lengalengas, trava-língua, adivinhas, provérbios, quadras (…). Junte, sempre, o seu nome e o do informante e o local de origem do saber. (Tel. 289 542 9927 [email protected])».
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Vamos brincar
Em ambos os volumes há sugestões pedagógicas. No 1º, aparecem no fim de cada uma das partes, no 2º, surgem na mesma página. Aí se explica como se joga, quais os gestos que se podem fazer, o que se pode aprender. Dando o exemplo de «Talim talão», no fim dessa secção, e identificando claramente a que lengalenga se refere, José Ruivinho Brazão explica como se pode brincar, enquanto se cantarola:
Talim Talão
Cabeça de cão,
Orelhas de gato
Não têm coração.
«Adulto e criança, sentados ou de pé, frente a frente, balouçam-se de mãos dadas para a frente e para trás, ao mesmo tempo que recitam a lengalenga. Dois adultos seguram nos pés e nas mãos da criança e balouçam-na, ao mesmo tempo que recitam a lengalenga. O mesmo jogo pode ser feito entre crianças.»
E contar adivinhas? Não é divertido? Quando alguém começa, logo a nossa memória se aviva e lembramo-nos de outra e mais outra e mais outra. E assim se pode passar um bom bocado. O autor diz que, no «jogo adivinhístico, pode o adulto centrar a atenção em motivos temáticos diversificados ou optar por uma sugestão temática, como o corpo, a alimentação e a mesa, os animais ou os vegetais» (p.66). Ora experimentem:
«Qual é coisa qual é ela/ Que entra pela casa/ E põe-se à janela?»; «Somos duas irmãs gémeas./ Despidas ou enfeitadas, / Nunca nos podemos ver/ E nunca andamos zangadas».
Vamos jogar
Quando jogávamos às escondidas, era preciso selecionar a pessoa que se escondia: «Anani Ananão,/ Ficas tu e eu não./ Quantas patas tem o gato, / Uma, duas, três, quatro».
E para jogar à «cabra cega»? Uma de olhos vendados e o grupo a recitar, enquanto a fazia girar, para a desorientar, antes de começarem a correr, cada uma para seu lado: «– Cabra Cega, donde vens?/ – Venho de Vizela./ – Que trazes na cesta?/ – Pão e canela./ Dás-me dela?/ – Não, que é para mim/ E prà minha velha./ Busca-a, Cabra Cega.»
Quando os jogos exigiam equipas, havia que decidir quem ficava de um lado ou de outro. Nestes livros, pude recordar (variando as versões, mas perfeitamente reconhecíveis) algumas das «técnicas» que usávamos, como a do Bom Barqueiro (do livro, tirei a canção e da minha memória tirei o modo): fazíamos uma fila, todos agarrados uns aos outros, e passávamos por baixo dos braços estendidos, em arco, de duas crianças (as mais altas, normalmente), que respondiam, com a segunda parte desta lengalenga, à primeira que o grupo cantava: «– Bom barqueiro, /Deixai-me passar./ Meus filhinhos/ Pequeninos/ Não os posso / Sustentar./ – Passarás, / Passarás, / Mas algum/ Deixarás:/ Se não for/ A mãe da frente, / Será o filho/ Lá detrás». E a última criança ficava presa entre os braços das outras, que os baixavam e lhe perguntavam qualquer coisa como: «queres morango ou chocolate?». Consoante a resposta, colocava-se atrás do respetivo barqueiro e as equipas iam-se formando.
Ah, mas estes livros têm tantas, tantas coisas mais! Têm quadras do Cancioneiro, têm contos, têm canções de embalar, provérbios, trava-línguas…
Os mais crescidos vão recordar a infância e vão ter vontade de se divertir com os mais novos.
(Artigo publicado na última edição do Caderno de Artes Cultura.Sul)