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Programador cultural
na C. M. de Loulé
http://escrytos.blogspot.pt
Recordo tardes bem passadas com o José Louro em amena cavaqueira a falar sobre o Zeca, que ele tanto estima(va). (In)confidências, episódios, curiosidades que a minha memória foi retendo como pôde, aqui e ali, cuja afectividade, cumplicidade e respeito inerentes ao tom do discurso, às estórias em si, me tocaram sempre. Há pouco tempo, a 23 de fevereiro, na passagem dos 30 anos sobre o falecimento de José Afonso, acabei revisitando esses momentos preciosos que me deixaram um sorriso no rosto, precisamente ao ler um depoimento do Zé Louro sobre o seu amigo, colega de docência e cantautor maior:
Fosse em Santo António do Alto, um miradouro isolado no topo de Faro, fosse no teu barco com o António Barahona e o Pité, fosse em nossa casa, quantas cantigas tuas se eclipsaram no mesmo éter, no mesmo vazio. Tu pegavas na tua viola (eras o único, entre nós, que dedilhava as cordas e, mesmo assim, lastimando e protestando que os teus dedos não iam além das duas posições básicas de, como dizias, acompanhar o teu “tem grelinhos, tem grelinhos no quintal” ou o “caga cão, caga gato, caga o feijão carrapato”) e, versejando um provisório lá-lá-rá-lá-lá, pedias insistentemente que decorássemos tal improviso para, no dia seguinte, arranjarmos qualquer modo de o gravar. Só que o nosso ouvido e a nossa memória novamente dissipavam o que poderia ter sido uma coisa bonita saída do teu talento. Merda! – dizias tu, nunca mais consigo arranjar um desses gravadores portáteis!
É que o dinheiro era pouco e, quando no dia 30 ias à livraria pagar os livros fiados durante o mês, lá ficava uma boa parte do teu ordenado de professor, e o que restava lá se convertia em muitos pequenos-almoços, almoços, jantares e ceias reduzidos a uns tantos copos de leite! E lá vinha agora uma nova revoada de protesto contra o leite, através da frase: “Ó pá, estou cheio de gases!” A vida era dura.
Lembro-me de o José Louro falar do grande zelo e amor do Zeca pelos estrados e palcos das sociedades recreativas algarvias, onde tantas vezes actuou, com maior frequência a partir de 1959, à socapa ou à revelia da polícia política, espraiando a limpidez da sua voz, “deixando lastro”, para usar as suas palavras.
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E, curiosamente, é sabido que José Afonso tendia a menorizar-se como músico, dizendo frequentemente que todos tocavam viola melhor do que ele e que o superavam na forma de comunicar com o público, que se esquecia das letras, que não sabia ler pautas musicais… Mesmo que tecnicamente isso pudesse ter um fundo de verdade, quem privou de perto com ele, como o José Louro, fala de uma verdade que o seu canto e modo de interpretar encerravam, os quais tinham o condão de criar, logo nas primeiras notas entoadas, um clima de partilha e cumplicidade com a audiência, fosse em que contexto fosse. No fundo, ele queria sentir-se igual aos outros, sem qualquer sentimento de altivez ou superioridade. Vasco Lourenço, capitão de Abril, guarda dele a imagem da anti-vedeta por excelência, ao conhecê-lo no Algarve, num período de férias, e ao sentir o incómodo do introvertido e reservado Zeca quando, numa mesa de convívio, conversas e copos, lhe pediam amiúde que cantasse. Assim como não apreciava, mesmo que fosse consensual entre todos, ser o último a actuar num encontro de músicos, temendo que esse facto o entronizasse e fizesse dele um “bonzo”.
Zeca chegou a ter uma “polémica” com Júlio Pereira, também seu amigo e companheiro de andanças musicais, quando um dia, à porta de um hotel em Vigo, lhe pediu um gravador e de um fôlego apenas lhe saiu completa a música “Achéga-te a mim, Maruxa”, ao que Pereira reagiu dizendo “Não percebes, Zeca? És um génio!”. Resposta afonsina: “Ó Júlio, isso não existe. As coisas vêm do trabalho…”
Alexandre O’Neill, num dos seus mais brilhantes textos cronísticos, escreveu que um poeta é um distraído terrivelmente atento. E, não obstante José Afonso nunca se ter assumido como poeta mas sim como autor de canções, para muitos que o conheceram mais profundamente ele era, porventura, o distraído mais atento e lúcido com quem conviveram. Se, por um lado, tudo parecia escapar-lhe, passar-lhe ao lado sem deixar rasto, havia nele, paralelamente, uma dimensão interrogativa, de auto-questionamento, de recusa de qualquer tutela ou filiação (era um espírito livre, inquieto e insubmisso, e irrenunciavelmente libertário), de atenção obsessiva a tudo o que o cercava, ao que se relacionasse com a política e economia.
Volto ao José Louro, que, a propósito do inspirador amigo, recorda:
Saio dessas sessões [atuais de homenagem ao Zeca] e penso no cheiro a lodo com que tu chegavas à praia de Faro, para dormir numa tenda em pleno areal, após teres atravessado o Parchal, em competição com aqueles de nós que seguiam enxutos pela estrada; penso nas tuas peúgas, uma de cada cor, ou até na ausência delas por já não haver mais na gaveta; penso na tua gravata com um nó perene que, à entrada na escola, enfiavas ao pescoço, quer houvesse um colarinho, quer um cós de t-shirt; penso na tua voz, com dias de limpidez total e com dias em que afirmavas que “qualquer galinha choca me faz concorrência”.
Luiza Neto Jorge, que com ele privou em Faro nessa fase de fruição panteísta de Zeca, descreve o amigo como “um tipo completamente despistado, um tipo distraído ao máximo a quem estavam sempre a acontecer coisas inimagináveis”. Exemplo disso é o episódio ocorrido na Beira, em Moçambique, para onde José Afonso partiu em 1964 com Maria Zélia, com quem casou, ao encontro dos pais e dos dois filhos do primeiro casamento, aí leccionando durante três anos. O casal habitava num prédio com seis apartamentos, geminados, três de cada lado, aos quais se acedia pela traseira através de uma escada de serviço comum. Ao final de uma tarde, ao regressar das aulas Zeca entrou, esfomeado, pela cozinha de um dos apartamentos e sentou-se a comer um pudim que foi buscar ao frigorífico, altura em que estranhou e se lembrou que Zélia não costumava fazer pudim. Percebeu então que se tinha enganado na porta e entrara na casa do vizinho. No dia seguinte houve muitos pedidos de desculpa aos vizinhos, que só então caíram em si de espanto.
Um céu deste mundo
Numa entrevista a José António Salvador, a propósito da sua estadia no Algarve, José Afonso fala de uma fase de euforia extremamente gratificante e das coisas mais felizes da sua vida, em que discutia com amigos pontos de vista vários, e em que havia, como que ritualmente, o hábito da caminhada, de andar a pé até Olhão, Quarteira e até ainda mais longe. Numa carta enviada de Faro ao seu irmão em Janeiro de 1961, Zeca assegurava ter “exterminado certos resíduos de patetismo bucólico que outrora o traziam em perpétuo estado de deliquescência”. Acreditava na revolução interior pelo contacto com os outros, mais do que na exterior, pois para ele as mudanças deveriam assentar “numa reivindicação integral da vida a partir de cada personalidade”. No Algarve sentiu aquela sensação de apaziguamento e abertura de horizontes que Torga também fala num dos seus escritos sobre a região, quando alude à brancura dos corpos e das almas, à limpeza das casas e das ruas, à harmonia dos seres e da paisagem que o lavavam da fuligem que se lhe agarrara aos ossos e lhe clarificavam as courelas encardidas que trazia no coração.
Zeca apaixonou-se por essa bem-aventurança terrena, “onde um poeta tem a sensação de que se pode viver do ar”, um Algarve “como a miragem dum céu deste mundo, sem nenhum dos atavios que aviltam a condição dum céu” (para usar impressões de Torga novamente). Tornou-se um “artista litoral”, pois sem mar, sem sol, sem esse diálogo físico com o espaço sem limites, não se reconheceria, e foi isso que lhe permitiu atingir o pouco equilíbrio que o mantinha, como confessa numa outra missiva também endereçada ao irmão João.
Fez uma vida muita pagã, de ligação à natureza, andando pelos bailaricos das colectividades e conhecendo uma população muito interessante, sem pensar demasiado em cantigas, embora fosse fazendo uma ou outra aqui e ali. Já Manuel Alegre recorda que, ainda em Coimbra, José Afonso resolveu um dia partir para Marrocos. Como se a tentação do sul já estivesse dentro dele. “Ou talvez daquele azul de que fala Mallarmé e que era, de certo modo, a cor da sua voz. Ele era como a cigarra e precisava do espaço do Verão, Alentejo, Algarve, a planície, as areias e o mar” (Alegre).
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É neste período que José Afonso convive com figuras marcantes, que ajudam a apurar a sua consciência poética, como Luiza Neto Jorge, António Barahona da Fonseca ou António Ramos Rosa. Isto não para falar da influência que nele tiveram os surrealistas, tanto os franceses como os portugueses (vejam-se letras como “Rio Largo de Profundis”, “A acupunctura em Odemira” e outras), e também alguns poetas espanhóis, a começar pelos místicos e barrocos.
O barco referido na letra “Tenho barcos, tenho remos” pertencia a uma pequena sociedade constituída por Eduardo dos Santos Pité, António Barahona, António Bronze e José Afonso, que o salvaram da decomposição e do esquecimento. A embarcação era alcunhada pelos pescadores de “Barco do Diabo”, referência às viagens e noitadas passadas na Ria, e era, segundo a poetisa Luiza Neto Jorge, o “catalisador dessa subversão do quotidiano” que unia aquele grupo de amigos. Situações vividas pelos quatro, em comunidade perfeita com o mar algarvio, agrupam-se numa espécie de ciclo fraterno representativo de uma das fases mais felizes da vida de Zeca. Foi nesse ambiente dos sapais da ria de Faro e dos areais do sotavento que nasceram canções como o “Menino do Bairro Negro” ou o “Senhor Poeta”, tantas vezes entoadas por José Afonso no quase mítico barco. Vitorino, curiosamente, também recorda o facto de Zeca já então ser muito conhecido em Tavira por, entre outras aventuras, ter descido o rio Gilão à proa duma barca a cantar por altura dos festejos de Carnaval.
Amor maior, tons maiores
Foi também no Algarve, mais particularmente na Fuzeta, que José Afonso conheceu aquela que viria a ser a sua segunda mulher, Maria Zélia, com a qual viveu “uma vida muito viva, vivida com paixão e algum desequilíbrio”. Confessa o cantautor: “O conhecimento da Zélia, num lugar do Algarve, reconciliou-me com a água fresca e com os tons maiores. Passei a fazer canções maiores.” O cantautor grava em 1964 um EP que integrava as canções “Coro dos Caídos”, “Ó Vila de Olhão”, “Canção do Mar” e “Maria”, esta última dedicada a Zélia, que lhe dá estabilidade emocional, afectiva e familiar, e se converte no grande pilar de sustentação de uma vida andarilha, rebelde e marcada por privações e marginalizações impostas pela ditadura em relação ao ensino: “Maria / Nascida no monte / À beira da estrada / Maria / Bebida na fonte / Nas ervas criada // Talvez / Que Maria se espante / De ser tão louvada / Mas não / Quem por ela se prende / De a ver tão prendada”. Em carta enviada ao irmão João em 1963, sobre a sua relação com Zélia, Zeca revelava de forma optimista estar convencido que desta vez acertara.
O amparo afectivo e emocional (a mulher, os amigos, os alunos) e o convívio com a natureza algarvia e sua luz e água mediterrânicas foram esses portos seguros, essa nutrição de que o hipocondríaco (frequentemente com queixas do foro respiratório, más digestões, azia e “pedra no diafragma”) e imprevisível José Afonso precisava para prosseguir em frente. Ele era, segundo José Louro conta, um homem tenso e impaciente, e de uma pureza rebelde quase infantil. Tinha sempre pressa sem a ter. E trazia em si uma ansiedade permanente, como se o dia seguinte fosse um insustentável novelo de incertezas. Como se não conseguisse libertar-se do labirinto de fantasmas e medos que, desde a infância, lhe moveu cerco. Segundo José Jorge Letria, que tanto privou com ele, “a sua instabilidade nervosa tinha expressão psicossomática”:
Era essa a forma de somatizar as tensões que a sua vida o forçava a acumular. O seu aparente desprendimento e a sua proverbial distracção ocultavam uma enorme ansiedade que uma vida inteira em ditadura acabara por transformar numa verdadeira doença existencial [não por acaso a sua tese final de licenciatura foi sobre Sartre]. O menino de Aveiro, que só esporadicamente pôde desfrutar do carinho e do amparo dos pais, vivendo numa errância quase permanente, nunca deixou de olhar o mundo, mesmo na idade madura, através das lentes de uma velha miopia e de uma insegurança que lhe foram desgastando o espírito e o corpo.
A própria relação com Zélia não deixou de ter contornos caricatos, como Zeca relembrava:
A Zélia não teve oportunidade de estudar por razões económicas, suponho. Então vivi uma verdadeira situação siciliana, um bocado ridícula, mas que efectivamente existiu. Toda a Fuzeta me sacudiu e de uma maneira geral se prestou ao papel de policiar as minhas relações com a Zélia. Durante dois anos consegui viver uma situação praticamente impossível, em que me senti obrigada a meter-me em quase todos os buracos do mundo. Conseguiram privar-me do contacto com a Zélia.
Luiza Neto Jorge relata que, para esta situação, contou o facto de José Afonso ser divorciado e manifestar ódio “pelas mãezinhas das meninas que fiscalizavam os seus comportamentos, ao mesmo tempo que se dispunham a deixá-lo sozinho com as filhas, pretextando uma ida às compras para que as filhas preparassem a armadilha ao doutor”. Na Fuzeta Zeca era encarado como um tipo que vinha do exterior, fora do sistema deles e que lhes escapava. Hostilizado e olhado como uma figura um bocado aberrante (tal como os seus amigos Luiza, Barahona ou António Bronze o eram), José Afonso apenas conseguia encontrar-se com Zélia nos meses de Junho e Julho na ilha de Faro.
Olhão inspiradora
Mas considerava Olhão a sua terra adoptiva, onde todas as semanas se deslocava e através de um roteiro pessoal deambulava pelo cais e pelas cabanas. Mais tarde reconheceria ter tido sempre uma grande paixão por aquela terra, que imaginava como a do “trabalho ou a dos indivíduos temperados pela experiência”, enquanto Faro “era a cidade dos administrativos, dos engravatados, dos pequenos comerciantes”.
Ao falar do contexto que deu origem à canção “Ó Vila de Olhão” (publicada em 1964 e dedicada aos pescadores olhanenses, cujo humor popular ele tanto apreciava), Zeca recorda as suas muitas viagens de comboio àquela localidade: “A meio do caminho da Fuzeta, entre Olhão e Marim, a vila vai-se adelgaçando, a viagem torna-se mais rápida e ruidosa, devido ao vento que entra pelas janelas. Pode-se berrar sem que ninguém nos ouça.” Servida pela cadência mecânica do “pouca-terra”, aquela crónica rimada sobre as vicissitudes por que passa o mexilhão quando o mar bate na rocha alude metaforicamente a Henrique Ferreiro, dirigente da Junta Central das Casas de Pescadores onde era delegado do Governo junto dos organismos das pescas e apoiante do Estado Novo: “Ó Vila de Olhão / da Restauração / Madrinha do povo / Madrasta é que não / Quem te pôs assim / Mar feito num cão / Foi o tubarão”
A fase algarvia correspondeu ainda a um período de vital mudança e renovação no repertório do cantautor e na música que até então se fazia em Portugal, nomeadamente com o EP “Balada de Outono” (em 1960) e a não inclusão, pela primeira vez, do som da guitarra em 1962 no álbum Coimbra Orfeon de Portugal. No mesmo ano edita o EP que inclui canções como “Menino d’Oiro”, “No lago do breu”, “Tenho barcos, tenho remos” e “Senhor Poeta”, sendo acompanhado apenas à viola por Rui Pato, figura-chave como instrumentista neste processo de renovação estética e de criação de uma nova linguagem musical e poética, nascendo a “balada” como género musical contemporâneo e autónomo, que já não era fado de Coimbra nem canção tradicional portuguesa. Em 1963, a edição dos temas “Os vampiros” e “Menino do Bairro Negro” marca definitivamente, pela sua temática e abordagem musical, a assunção da balada como instrumento de intervenção política e cívica. Rui Pato, seu fiel companheiro e amigo, recorda esses anos de oiro, precários mas extremamente inventivos, vivenciados a sul:
Os ensaios eram poucos, feitos quase sempre nas férias. Foi a minha primeira oportunidade de conhecer o Algarve: em 1963, fiquei uma semana em sua casa no n.º68 da Rua Duarte Pacheco em Faro. Partíamos de manhã com destino à ilha do Farol ou da Armona, de barco, com a viola e uma ração de duas sanduíches e duas meloas. Quando eu não podia ir ter com ele, vinha ele a Coimbra à boleia ou então apanhava o comboio até à estação para o qual o pouco dinheiro de que dispunha dava (dizia: “Venda-me um bilhete de 60 escudos em 2ª. classe em direcção ao Norte.”), fazendo o resto à boleia ou a pé, e cá chegava cheio de fome, sem um tostão no bolso, e com um bornal com uma muda de roupa, alguns medicamentos e muitos livros.
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Como professor (uma das suas paixões) teve uma carreira curta, que começaria no Colégio de S. José em Mangualde e passaria depois por Aljustrel, Lagos, Faro, Alcobaça e Setúbal. Sobre esse ofício insistia amiúde na crença de que a sua acção era sobretudo de carácter existencial, na medida em que queria pôr os alunos a funcionar como pessoas, incutindo-lhes um espírito crítico, fazendo com que exercitassem a sua imaginação à margem dos programas oficiais. Ao irmão João, que o visitou em Faro em 1962, encontrando-o à mesa de um café a perguntar aos alunos as notas que mereciam, José Afonso afirmou acreditar na libertação das pessoas através de uma formação pedagógica que não se cingisse apenas a programas e livros. A experiência de professor, altamente estimulante para o seu trabalho musical, que tivera em Mangualde, onde colheu junto dos alunos “uma certa visão poética e ao mesmo tempo pedagógica”, foi depois complementada através de “um tipo de relações de uma pureza impossível” com gente mais madura, trabalhadores e operários que conheceu nas aulas nocturnas de Olhão e Faro. Nos alunos deixou a imagem de alguém que não seguia o programa e falava de outras coisas. Usava os sapatos desatados e faltava para ir fazer gravações a França e concertos por outros lugares.
Mas este sul de José Afonso não se circunscrevia ao Algarve. Numa carta enviada aos pais em 23 de Maio de 1964 confessava sentidamente:
Eu e a Zélia estivemos em Grândola numa sociedade operária. Aí actuámos, eu e o Paredes (o filho é ainda maior que o pai) no meio de uma assistência atenta e compenetrada, toda ela de operários e mulheres de xaile e lenço. Ofereci-lhes uma canção feita na véspera (16/5/1964) [Cantar alentejano], uma espécie de evocação da terra alentejana e do seu símbolo ainda vivo na lembrança do homem do povo: a Catarina Eufémia, uma ceifeira de Baleizão morta pela Guarda Republicana em circunstâncias que forneceriam matéria para uma canção de gesta. Se alguma vez tiver de deixar esta terra é a lembrança dos homens que conheci em Grândola e noutros lugares semelhantes que me fará voltar.
(Artigo publicado na última edição do Caderno de Artes Cultura.Sul)