A Lei n.º 8/2017, de 3 de março, que vigora desde maio desse mesmo ano e que veio alterar o nosso Código Civil, veio operar uma verdadeira “Revolução” no Direito, admitindo-se, pela primeira vez, no nosso sistema jurídico, que os animais não são coisas.
Os animais são hoje entendidos como pertencendo a uma terceira categoria, entre as coisas e as pessoas, tendo-se consagrando, um novo estatuto jurídico para os animais no novo Artigo 201.º-B do Código Civil que estabeleceu que “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.”
Esta lei veio ainda explicitar que a “proteção jurídica dos animais”, conforme o disposto no Artigo 201.º-C “(…) opera por via das disposições do presente código e de legislação especial”.
É certo que já havia sinais de que os animais mereciam um tratamento diferenciado das coisas no nosso ordenamento jurídico, tendentes à sua proteção, muito antes da chegada da Lei n.º 8/2017. E quando digo muito antes, falo desde os séculos passados.
Partindo do passado mais recente, já com a Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, se tinha dado um passo importantíssimo rumo a um reconhecimento jurídico da proteção dos animais. Infelizmente, essa lei nunca veio a ser regulamentada, pelo que violação dos princípios aí consagrados ainda hoje não devolve qualquer consequência para o prevaricador. Não passou de uma declaração de princípios.
O Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, e a Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, que alterou o nosso Código Penal, vieram trazer outro impulso à proteção dos animais, em especial aos animais de companhia, estabelecendo, respetivamente, o quadro de proteção contraordenacional e criminal referente a situações de negligência quanto aos indicadores de bem-estar dos animais, abandono e maus tratos físicos perpetrados contra os animais que integram as nossas famílias ou que a isso são destinados.
Começam a surgir localmente, muito por força das associações zoófilas e exigência das comunidades locais, uma maior atenção à proteção dos animais, em especial dos ditos animais de companhia.
Se é verdade que as autarquias, sejam elas municípios ou juntas de freguesia, já detinham muitas obrigações relativamente aos animais anteriores a toda esta mudança legislativa, essas mesmas obrigações eram, na sua maioria, de natureza higio-sanitária (tenha-se, como exemplo, a obrigação da recolha de animais errantes pelos canis municipais a fim de evitar perigos para a saúde pública – atuais Centros de Recolha Oficiais (CROs) – ou obrigação de aplicação de vacina antirrábica ou o controlo das ditas “pragas” pelos departamentos de higiene urbana), ou também de natureza “recenseadora” como a obrigatoriedade da identificação eletrónica pelas juntas de freguesia, imposta pelo Decreto-Lei n.º 313/2003, de 17 de dezembro, sendo que, nesta altura, esta obrigação apenas se aplicava a cães perigosos e potencialmente perigosos, cães utilizados em ato venatório ou ainda aos cães de exposição para fins comerciais, em estabelecimentos de venda, locais de criação, feiras e concursos, provas funcionais, em publicidade ou fins similares.
Este recenseamento passou a ser obrigatório, em julho de 2008, para todos os cães nascidos após 1 de julho desse mesmo ano, independentemente da sua classificação.
O problema dos animais ditos de companhia, numa altura em que os estudos mostram que já existem mais animais de companhia por habitação do que crianças, e em que as famílias constituídas por uma só pessoa proliferam, passando os animais também a assumir o papel de membros da família (muitas vezes os únicos…), levou a que, também no plano social, os animais passassem a ser considerados enquanto peças da estratégia política orientada para as comunidades locais.
Os avanços da ciência, que nos mostram as incríveis capacidades dos animais, até recentemente ignoradas ou desconhecidas, bem assim como a crescente sensibilidade social para com os outros seres animais e o meio ambiente e a já vasta e complexa legislação aplicável nestas matérias, levaram as autarquias a dar um salto qualitativo e quantitativo na sua relação com estes novos “atores” da dinâmica política local.
Sinal disso, em 2013, deu-se uma viragem importante no paradigma da relação das autarquias com os animais pertencentes às suas comunidades com a criação do primeiro Provedor Municipal dos Animais em Lisboa, cargo esse que se mantém até hoje, estando já no terceiro mandato, tendo este exemplo sido seguido por Ovar, logo em 2016, embora para uma experiência menos bem sucedida e efémera.
Felizmente, em 2018, já existem sinais claros em outros municípios, de norte a sul de Portugal, da existência de uma vontade política tendente à criação do cargo de Provedor Municipal dos Animais pelas respetivas autarquias.
Em Lisboa, o Provedor Municipal dos Animais, figura independente e imparcial, tem assumido um papel representativo dos interesses dos animais a nível local, bem como assumido a função de observador do cumprimento do já vasto acervo de legislação sobre proteção animal no espaço do Município. Não tendo competência decisória nem executiva, trabalha de perto com as autarquias de Lisboa e os serviços da Câmara Municipal num contexto de diálogo, aconselhamento e acompanhamento de denúncias.
Vários programas na área da sensibilização e formação têm vindo a ser desenvolvidos, em parceria com associações zoófilas, outras entidades públicas ou de forma independente, com o apoio e cooperação das autarquias locais (câmara e juntas de freguesia).
Com as obrigações acrescidas para as autarquias após a entrada em vigor em pleno, no passado dia 23 de setembro de 2018, da Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto, regulamentada pela Portaria n.º 146/2017 de 26 de abril e que veio proibir o abate como forma de controlo populacional pelas autarquias, estabelecendo, no caso dos felinos errantes, a implementação de programas CED (Captura-Esterilização-Devolução), as autarquias viram as suas responsabilidades acrescidas, muitas vezes além das suas capacidades.
Talvez isso explique este movimento local que se começa a sentir um pouco por todo o lado no sentido de serem criadas, a nível das juntas de freguesia e das câmaras municipais, novas estruturas, passando por comissões locais de bem-estar animal (como já acontece em Lisboa, nas Juntas de Freguesia da Penha de França e na de Arroios), ou Provedores dos Animais ao nível dos municípios que possam auxiliar os decisores políticos nas estratégias para a prossecução destas novas obrigações, correspondendo, ao mesmo tempo, às novas exigências da comunidade, cada vez mais sensível e informada sobre a temática do bem-estar animal.
Como costumo dizer, “Provedores dos Animais” somos todos nós ou deveremos sê-lo. O trabalho em prol da proteção dos animais exige vários atores a vários níveis: a começar pela academia, que capacita o legislador a operar reformas na nossa legislação, passando pelos decisores judiciais e pelos órgãos de polícia criminal e sem descurar o papel do domínio público e da sociedade civil.
As autarquias locais assumem, neste contexto, um relevantíssimo papel, cada vez mais interventivo na proteção dos animais e de potencial maior eficácia pelo contacto privilegiado e mais direto com a comunidade.