O livro é fascinante, enciclopédico, embala-nos numa viagem pela história onde nos esclarecemos como as pessoas, no presente e no passado, escapam à solidão, ao medo e à vida sem sentido, encontram novas formas de afecto e de aventura e aprendem a evitar serem prisioneiras dos seus erros e das suas memórias, e daí a sua classificação de leitura obrigatória: ‘História Íntima da Humanidade’, por Theodore Zeldin, Texto Editores, 2017.
Deste mergulho enciclopédico, aqui se destaca um capítulo com título curioso: “Porque floresceu a compaixão, mesmo em terrenos pedregosos”. O historiador social entrevista ao longo desta notabilíssima investigação mulheres. Começa por conversar com Barbara McInnis, uma norte-americana de Boston, ela trata de excluídos, gente com auto-estima zero, alcoólicos. Onde encontra energia para tão duro trabalho? Responde sem hesitar que às necessidades dos seus hóspedes e a São Francisco de Assis cuja vida estudou, assim é-lhe menos tormentoso pôr pensos nas chagas de vagabundos que ainda não há muito tempo era impossível distinguir dos vulgares habitantes da cidade. O historiador reflete:
“Não há estatísticas que nos digam com que frequência perfeitos estranhos acorreram em auxílio dos doentes ou dos turistas, sem esperarem uma recompensa, mas apenas por se terem sentido comovidos pelo sofrimento e porque o desgosto é o inimigo comum da humanidade”. E a sua incursão deriva para os hospitais, comentando: “Os hospitais para doentes nem sempre existiram. Em 1800, os Estados Unidos tinham apenas dois e, em 1873, apenas 178. Foi somente há um século que o país começou a erigir os seus templos de saúde de uma maneira significativa. Em 1923, tinha 4978. O motivo estava no facto do tratamento dos doentes ser originalmente da responsabilidade das famílias. O segundo obstáculo que o homem ergueu no caminho da compaixão para com os estranhos foi o medo das doenças, deformidades e todo o tipo de deficiências. Os hospitais dos tempos antigos eram para os pobres e órfãos e excluíam os doentes, os loucos, os epiléticos, os incuráveis e os que tinham doenças humilhantes ou sexuais. Os assírios, e praticamente todas as civilizações que se seguiram, espalharam o boato de que as doenças eram castigos pelos pecados e que só podiam ser curados pelo arrependimento ou pela magia. Por isso mesmo, havia muito pouco respeito por aqueles que davam assistência às necessidades físicas dos doentes, tarefa em geral deixada às viúvas, mulheres caídas em desgraça e camponeses sem trabalho. Era frequente que as enfermeiras não fossem pagas, sendo tratadas como servas e recebendo apenas abrigo e comida.
As Irmãs da Caridade surgiram em França, em 1633, e tornaram-se o arquétipo, tanto na Europa como na América, das enfermeiras laicas, generosas e de bom coração. Não viviam em conventos, não procuravam a santidade na meditação Os fundadores desta ordem de enfermeiras foram um espantoso par de santos unidos por um amor platónico. São Vicente de Paulo (1581-1660) teve uma origem camponesa, Luísa de Marillac (1591-1660) era filha ilegítima de um aristocrata e de uma serva. Ambos acreditavam em que cada pobre era outro Cristo na Terra e que cada doente representava a crucificação, e que portanto tinham de ser servidos com humildade. A sua meta não era a felicidade para si própria. Em vez disso, ensinaram as Irmãs a espalhar a alegria e a cordialidade entre os estranhos e a aceitar a adversidade com satisfação. Todas as tensões que afligiram as enfermeiras nos séculos seguintes foram previstas por este casal extraordinário. Estabeleceram o modelo para as enfermeiras do futuro, desconhecedoras do egoísmo.
Porém, o modelo não deixava de ter modelos. Nos séculos XVII e XVIII a profissão tornou-se quase exclusivamente feminina, o que abriu enormes oportunidades para as mulheres, mas com resultados emocionais inesperados e infelizes. As pessoas acabaram por acreditar que só as mulheres eram apropriadas para a enfermagem, que se tratava de uma tarefa equivalente à de uma dona de casa e que deveriam subordinar-se ao controlo dos homens”.
O autor disserta sobre a enfermagem medieval de São João de Jerusalém e Malta, em Malta, no século XVI construiu-se um dos mais magníficos hospitais do mundo, para 700 doentes, numa enfermaria com 150 metros de comprimento, cada cama protegida por uma tenda. Os lençóis eram mudados quando necessário e alimentação era tão boa como a atenção pessoal: arroz, aletria e ervas aromáticas, carne picada, caça, vaca e vitela, ovos frescos, amêndoas e biscoito doces.
Voltemos ao autor: “No passado, os hospitais raramente empregavam médicos, uma vez que eram, essencialmente, casas das almas. Um aprendiz de médico poderia examinar os recém-chegados, mas fazia-o apenas para excluir os que não interessavam… por estarem demasiado doentes. Contudo, em finais do século XVIII, os médicos protestaram, dizendo que o excesso de comida não era necessariamente a melhor maneira de recuperar as forças, e foi a partir desse momento que começaram gradualmente a controlar os hospitais, transformando-os em instalações para a investigação médica e preocupando-se mais com as técnicas de cura dos doentes do que com as suas necessidades espirituais (…). O mais insidioso impedimento à expressão da compaixão tem sido uma visão cínica ou desesperada em relação à humanidade, facto que pode ser demonstrado pelas experiências dos EUA. Dois terços dos americanos dizem que é importante não se envolveram demasiado nos problemas dos outros. Desligam-se inteiramente, depois de praticadas as boas acções, e nem sequer são necessariamente calorosos ou compassivos nas suas relações normais. Nos velhos tempos, os americanos tentavam ser compassivos em obediência aos mandamentos de Deus. Agora, contudo, é mais frequente utilizarem a linguagem da terapia para explicar os seus motivos: a compaixão fá-los sentirem-se bem, melhora-lhes a auto-estima”.
Acontece que as coisas mudaram, a começar por uma maior esperança de vida, o número de doenças, a versatilidade de respostas terapêuticas, a exigência que se pôs à adaptação da cultura e da religião, os imperativos que também se colocaram às ciências da ética e da vida, as modificações na escala de valores quanto à solidariedade e a entreajuda. Alargou-se o conceito de doente, da compaixão, é enorme a expectativa para que a investigação encontre novas vacinas, trave o desenvolvimento de cancros, melhore a qualidade de vida dos doentes crónicos.
Dado curioso é que essa mesma compaixão olha o doente, o desempregado de longa duração, o socialmente repudiado dentro de o espectro em que actua a compaixão. O cuidado é um termo que se desenvolve no novo século, mas tenha-se em atenção que o cuidado com os despojados e os que sofrem não é sinónimo de que o universo da tolerância siga pelo mesmo caminho.