Nas últimas semanas temos assistido a uma proliferação de comentários de peritos e não peritos sobre a vacinação de adolescentes com vacinas de mRNA (Cominarty, Pfizer/SpikeVax, Moderna) contra a covid-19. Verificámos, inclusivamente, tomadas de posição de elementos de um órgão regulador, o colégio de especialidade de pediatria da Ordem dos Médicos, que, de certa forma, vinculam os médicos pediatras. Em contraciclo com aquilo que se tem verificado na maioria dos países europeus, estes comentários/posições contra a vacinação de adolescentes saudáveis com a vacina contra a covid-19 sustentam-se nos seguintes argumentos:
- 1. A doença covid-19 é, na larga maioria dos casos, benigna em idade pediátrica, sendo raros os casos com necessidade de internamento, cuidados intensivos ou morte;
- 2. A forma mais grave de apresentação pediátrica, a síndrome inflamatória multissistémica associada ao SARS-CoV2 (MIS-C), é ainda mais rara e não ocorreram casos fatais em Portugal;
- 3. A benignidade da infeção em idade pediátrica permitirá que este grupo etário seja “imunizado” progressivamente por contacto com o vírus selvagem, sem risco acrescido de internamento ou morte;
- 4. Uma vez que a doença é benigna neste grupo etário, a ocorrência de casos de miocardite/miopericardite associados à vacinação faz com que, na visão destes colegas, o risco suplante os benefícios;
- 5. A utilização de vacinas em crianças portuguesas quando existem idosos por vacinar noutros locais do mundo é, eticamente, inaceitável;
- 6. Estaríamos a vacinar adolescentes para estes “poderem ir jantar fora”.
Não concordamos, na generalidade, com estes argumentos e acreditamos que a vacinação universal dos adolescentes deverá ser, nesta fase da pandemia, uma prioridade em Portugal. Pela saúde global das crianças, mas também pelo controlo da pandemia.
Concordando com as alíneas 1) e 2), sabemos que a infeção por SARS-CoV2 em idade pediátrica é, na sua grande maioria, assintomática ou benigna.
Não podemos, porém, esquecer que houve em Portugal mais de uma centena de casos de MIS-C, dos quais algumas dezenas necessitaram de internamento em cuidados intensivos. Isto numa altura em que, ao contrário do que se passa atualmente, a estirpe circulante tinha muito pouco tropismo pela criança e em que os grandes afetados eram os adultos mais velhos, em particular os idosos.
Neste momento, fruto da emergência de novas estirpes e da vacinação em massa da população adulta, assistimos a um desvio da infeção para faixas etárias mais jovens, sendo este grupo responsável pela maioria das infeções. Não podemos, por isso, concordar que o melhor caminho seja a infeção natural, sem aumento significativo dos internamentos e da morbilidade. Pelo contrário, o aumento da infeção em crianças e adolescentes vai aumentar o número de internamentos, nomeadamente, por patologias graves como o MIS-C.
A não vacinação de adolescentes levará, inevitavelmente, à criação de uma bolsa de população suscetível à infeção. Assim, será mantida a circulação do vírus na comunidade com risco de transmissão a não imunizados, ou aqueles que não responderam de forma mais efetiva à vacina. Desta forma, existe a possibilidade de surgimento de novas variantes, colocando em causa a aquisição da “imunidade de grupo”. Até porque, apesar de sabermos que a vacinação não impede totalmente a infeção por SARS-CoV2, sabemos também que, provavelmente, a transmissão não é tão eficaz como num indivíduo infetado e não vacinado.
Por outro lado, parece-nos que a decisão de vacinar apenas adolescentes com fatores de risco é errada, uma vez que:
– Mesmo nos grupos de risco mencionados na norma 002/2021, atualizada a 3/8/21, a doença covid-19 em idade pediátrica não tem tido casos graves com frequência.
– A maior gravidade nas crianças tem sido causada pela forma inflamatória multissistémica (MIS-C), potencialmente fatal, que é mais comum em adolescentes saudáveis, que apresentam resposta imunológica exacerbada e desregulada à infeção por SARS-CoV-2.
Relativamente a 4), como qualquer vacina, os riscos associados à vacinação não poderão suplantar os benefícios da mesma para que esta possa ser recomendada. Então vejamos:
– O Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP) analisou, de forma exaustiva, os casos de miocardite reportados nos EUA. Por cada milhão de doses de vacina de mRNA administrada dos 12-17 anos foram evitados cerca de 14.200 casos de covid-19, 398 hospitalizações, 109 admissões em cuidados intensivos e 3 mortes. O mesmo número de vacinados originou cerca de 65 casos de miocardite, quase sempre ligeira e resolvida com terapêutica sintomática.
– Apesar de por si só ser categórica, esta análise desvirtua uma outra realidade, que é a bem conhecida possibilidade de existência de casos de miocardite associados à infeção SARS-CoV2 nos adolescentes. E, neste caso, dados recentes demonstram que o risco de ter miocardite ou miopericardite devido à infeção SARS-CoV2 é cerca de seis vezes superior ao risco de ter miocardite pela vacinação.
Apesar de concordarmos com a necessidade de a luta contra a pandemia ser encarada de uma forma global e de existir uma distribuição mais equitativa das vacinas, o argumento apresentado em e) é, de certa forma, demagógico e populista, uma vez que, infelizmente, a visão idílica de partilha de vacinas pelo globo não existe.
Finalmente, apenas quem não viveu no dia a dia a explosão do número de casos de crianças com problemas psicológicos/psiquiátricos durante a pandemia pode desvalorizar a importância de proporcionar aos nossos adolescentes um crescimento o mais “normal” possível. Um crescimento onde ir fazer desporto, ir jantar fora ou a casa de amigos possa ser uma realidade. Um crescimento onde ir à escola, sem dezenas de interrupções e de isolamentos profiláticos, pelo terceiro ano letivo consecutivo, seja igualmente possível. Pela sua saúde mental, tão descurada em período de pandemia.
Por eles, mas também por todos nós, vacinemos os nossos adolescentes.
Crónica de opinião publicada pelo nosso parceiro Expresso