Manuel Carmo Gomes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, começou por apresentar a evolução das taxas de incidência por faixa etária – mostrando como o risco aumentou em janeiro (mais na faixa dos 18 a 24 anos e acima dos 80, também dos 13 aos 17) – na sua intervenção esta terça-feira durante a reunião do Infarmed. Mas seguiu com um puxão de orelhas ao poder político, a quem disse que as medidas tomadas foram erradas (por serem graduais e tardias).
O especialista rejeita que as críticas “tenham uma leitura política”, segundo afirmou ao Expresso. “Não quero que seja explorado politicamente, até porque respeito muito quem tem de tomar decisões. Mas acho que é minha obrigação dar um passo atrás porque a situação atual não se pode repetir”, afirma. “É a maior crise de saúde pública dos últimos 100 anos, qualquer que seja a métrica usada.”
Por sua iniciativa, Manuel Carmo Gomes deixará de fazer estas apresentações nas reuniões no Infarmed, como tem feito desde o início. Mas ofereceu-se à ministra da Saúde para estar presente e tirar dúvidas ou responder a perguntas nas próximas reuniões. “Pedi que me dispensassem de fazer estas apresentações quinzenais por falta de tempo, mas continuarei a estar disponível e até estar presente se for necessário”, afirma Carmo Gomes, que é também membro da comissão de vacinação.
JANEIRO “FOI MUITO MAU”
Na sua apresentação desta terça-feira, começou por lembrar que só a partir de 22 janeiro, “uma semana depois do confinamento leve, houve descida suave das taxas de incidência dos casos – embora ainda com mais casos”, explicou. “Se nos mantivéssemos neste tipo de confinamento iríamos ter um pico mais longe e mais alto. As medidas mais restritivas foram decisivas.”
A velocidade dos novos casos começou a descer a 30 de janeiro, disse o especialista. Agora, a evolução da curva epidémica já mostra uma descida. Mas “atenção”, acrescentou: com a descida do R “é preciso cuidado: depois de descer tem tendência a estabilizar, o nível de casos vai ainda descer, mas a velocidade dessa descida pode ser menor”.
Agora, Manuel Carmo Gomes acredita que vamos ter uma redução a metade dos número de novos casos “para 3000/dia em duas semanas“.
O especialistas volta ao que aconteceu no Natal, para mostrar como o indicador era enganador: houve “uma anomalia, o R desceu, quando houve aumento da incidência”. E aponta para outro indicador mais apropriado para medir o grau de risco: a percentagem de testes positivos: em janeiro “a percentagem de testes positivos foi muito alta, chegámos a atingir 20%, as entidades recomendam 5%”. Agora sim, “houve recuperação notável: o número de testes a subir com a incidência já a descer”.
“Janeiro foi muito mau”, insiste Manuel Carmo Gomes, desafiando os políticos, que têm de tomar as decisões: “Acho que é minha obrigação, como especialista, fazer uma reflexão sobre estratégia e o que podemos fazer melhor, para evitar chegar à situação de janeiro”.
E continuou: “A forma como temos vindo a lidar com a epidemia consiste em ler indicadores que chegam com 7 dias de atraso, adotar medidas em resposta, esperar uma semana ou até 15 dias para ver o resultado das medidas, que normalmente não são suficientes. E continuamos nisto. O que acontece é que a partir de certa altura não conseguimos controlar o vírus. E a sociedade começa a dividir-se, é o resultado de andarmos atrás da epidemia”.
Carmo Gomes propõe, assim, “uma postura completamente diferente”.
Na sua apresentação no Infarmed, exibiu um gráfico que mostrou naquele mesmo local, no fim março, precisamente “na segunda reunião do Infarmed”, gráfico onde alertava para a capacidade de propagação exponencial deste vírus – “e contra-intuitivo”.
“Durante um mês temos a sensação de uma evolução linear, que conseguimos ter a situação sob controlo. A partir de determinada altura o número de casos explode. Fomos para o Natal assim, e com um descuido de apenas 5 dias, chegámos a 12 mil casos em apenas seis semanas. Atenção, agora temos variantes com maior transmissibilidade” (em que o R pode passar de 1 para 1,4), alertou.
O especialista ainda voltou atrás no tempo, para ilustrar o alerta: “Em setembro estávamos com R acima de 1. Depois tivemos uma subida em outubro e um pico em novembro. Tivemos uma estratégia de sucessivamente ir adotando medidas graduais, sem conseguir travar de forma definitiva a epidemia”.
Foi assim, defendeu, que chegámos ao Natal com R acima de 1. Na reunião do Infarmed de início de janeiro, Carmo Gomes avisou que a situação era de alerta máximo. O Governo acabou por decretar um confinamento leve, sem fechar as escolas. “No meu entender, medidas não foram suficiente fortes”, disse agora.
Assim, a “resposta gradual é insuficiente. Precisamos de ter uma resposta agressiva guiada por critérios objetivos. Se ultrapassarem linhas vermelhas, temos de tomar medidas logo”, agressivas, acrescentou.
DINAMARCA FOI CASO EXEMPLAR
Assim, e recorrendo a um grupo de 871 cientistas europeus que tem recomendado isto mesmo aos governos, Carmo Gomes deu a pauta de recomendações – reforçadas pela “preocupação com as variantes”, que julga recomendarem “uma ainda mais premente mudança de estratégia”.
O caso exemplo foi o da Dinamarca. E o que mostrou Carmo Gomes que fez a Dinamarca? “Quando o número de casos começou a subir, respondeu com um aumento brutal da testagem. O resultado é que se em Portugal andamos atrás na incidência, a Dinamarca conseguiu manter a percentagem de testes positivos relativamente baixa.”
O vírus comporta-se como uma mola, acrescentou. “O problema é: como retiramos a mão da mola? A resposta é a testagem: se estivermos a retirar a mola com um pé, pomos na mola um peso igual para a mola não saltar. É esse o papel que a testagem tem.”
Para concluir: “Como vamos sair deste confinamento? Com um aumento muito grande de testagem”. E com linhas vermelhas que obrigam o Governo a pôr em campo esse reforço grande de testagem:
“As linhas vermelhas são termos um R que não ultrapassa 1,1 (duplica em 7 dias com nova variante); uma percentagem de testes positivos que não permita positividade de 10% (idealmente 5%); e uma incidência que não ultrapassa a capacidade de gerir doentes covid e não covid – sugiro os 2000 casos por dia, 1500 pessoas hospitalizadas, 200 em UCI.”
Estes critérios são muito objetivos e “devem ser publicitados”, defendeu ainda. “Precisamos de regras claras sobre quando devemos confinar e podemos desconfinar – e estamos ainda longe disso, na minha opinião. Se esses critérios forem publicitados as pessoas percebem.”
A ideia de reforço em massa da testagem permite cumprir este objetivo: “Não é fácil tomar medidas muito fortes, nomeadamente um confinamento, excepto a testagem, que permite reduzir o tempo de contaminação, apanhando as pessoas ainda antes de terem sintomas. E isto sem submeter o país a uma situação como a que temos agora. “Tudo sem permitir muito que a curva suba. E ganhar tempo para vacinar o maior número possível de pessoas”, os 1,4 milhões de alto risco que estão na primeira prioridade de vacinação.
No final da palestra, percebeu-se que foi a sua última naquele palco: Manuel Carlos Gomes pediu ao governo para sair das reuniões do Infarmed, onde marca presença desde o seu arranque, em março de 2020. O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro na reunião, mas publicitado pelo deputado do PSD, Ricardo Baptista Leite.
O especialista pediu isto por estar em muitas frentes neste combate, como seja na comissão de vacinação – e elaborando vários estudos sobre a evolução e resposta à pandemia, disse a ministra da Saúde no final da reunião, elogiando o seu contributo.