Pela primeira vez, um atlas da Península Ibérica mostra que há concelhos em Portugal com um risco de morte por determinados tipos de cancro maior do que seria esperado. O estudo analisou 840 mil óbitos por dez tipos de cancro, ocorridos nos dois países, entre 2003 e 2012, e foi feito pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e o Instituto de Saúde Carlos III, em Espanha.
O estudo começou por calcular a taxa de mortalidade de cada cancro por concelho de residência do doente (número de mortes dividido pela população). Depois, comparou essa taxa com o que seria de esperar se a distribuição dos óbitos fosse homogénea em toda a península. Se a média para um determinado cancro for de 30 mortes por 100 mil habitantes, um risco de morte 50% acima num concelho significa que teve 45 óbitos. “As manchas mais vermelhas dizem-nos que naqueles concelhos a taxa verificada de óbitos foi superior ao esperado”, explica Carlos Dias, coordenador do departamento de Epidemiologia do INSA. Como a probabilidade de ter cancro aumenta com a idade, as taxas foram ajustadas para remover o efeito da estrutura etária.
Os dados só vão até 2012, mas isso não retira relevância ao estudo, diz o epidemiologista. “A morte por cancro não tende a sofrer flutuações de um ano para o outro. O atlas merece agora ser estudado para perceber as manchas localizadas e as que extravasam fronteiras.” O Expresso falou com especialistas nos dez tipos de cancro para perceber o que explica os padrões — e colocou-os por ordem crescente de mortalidade em 2020, em Portugal, segundo as previsões do Observatório Global do Cancro.
1. Pulmão
“Apesar de ser muito incidente, o cancro do pulmão é menos expressivo em Portugal do que em Espanha, com quatro a seis vezes mais consumo de tabaco”, afirma António Araújo, diretor da Oncologia do Hospital de Santo António, no Porto. Os centros urbanos, Porto e Lisboa, e o interior do Alentejo são as regiões portuguesas com maior risco de mortalidade, por serem também onde mais se fuma. Portugal tem maior sobrevivência a cinco anos (16%) do que a média europeia (15%). Para o resultado contribui a qualidade dos tratamentos: “Funcionamos em conjunto, todas as equipas médicas seguem os mesmos protocolos. Conhecemo-nos todos e essa ligação terá um efeito positivo e de homogeneidade no país”, explica Venceslau Hespanhol, diretor da Pneumologia no Hospital de São João, Porto. Menos evidente é a explicação para o maior risco de morte nas mulheres. “Pode haver um viés na notificação, mais detalhada para as doentes, porque constatamos na prática clínica que o número de mulheres com cancro aumenta todos os anos, mas continuamos a ver, e a literatura confirma, que o sexo feminino é um bom prognóstico de sobrevivência”, sublinha Fernando Barata, responsável pela Oncologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
2. Mama
Ter um carcinoma fatal da mama é mais provável abaixo da região centro, irradiando para o sul de Espanha, junto à nossa linha de fronteira. “Não espanta que as assimetrias observadas em Portugal tenham alguma correspondência geográfica com Espanha”, diz Luís Costa, diretor da Oncologia no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. A ausência de surpresa está no paralelismo com os fatores de risco ou com o acesso a rastreio nessas áreas geográficas. Maria José Bento, coordenadora do Registo Oncológico Nacional e diretora da Epidemiologia do IPO-Porto, dá como exemplos “a história reprodutiva da mulher (baixa paridade, nascimento do primeiro filho após os 30 anos, utilização de contracetivos orais), comportamentos mais sedentários, maior consumo de tabaco e de álcool” mas também “o acesso a meios que permitam diagnosticar o cancro em fases mais precoces, como o rastreio populacional e a disponibilidade e acesso a tratamentos eficazes”. Maria José Bento destaca que “o rastreio do cancro da mama começou na região centro, no início da década de 90, e muito gradualmente foi-se estendendo, tendo-se iniciado em 2003, no norte, no distrito de Bragança. Só muito recentemente foi alargado aos distritos de Lisboa e Setúbal”.
3. Colorretal
A mancha no mapa de risco de mortalidade é evidente: Portugal destaca-se pela negativa face ao país vizinho e, tanto para os homens como para as mulheres portuguesas, é em Lisboa, Alentejo e Beira Interior que o perigo é maior. “Há várias hipóteses a funcionar de forma cumulativa: a idade avançada, o sedentarismo, tabagismo e hábitos alimentares (como carne vermelha ou processados, dizem os autores do estudo) e o menor acesso a cuidados de saúde na área da prevenção, designadamente a rastreios”, enumera Pedro Narra Figueiredo, responsável pela Gastrenterologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. “Este cancro é comprovadamente prevenível através da implementação de programas de rastreio. Estes programas são eficazes, quer na prevenção do aparecimento da doença quer na redução da taxa de mortalidade associada, ao permitir o diagnóstico numa fase mais precoce”, salienta. E, de facto, neste acesso Portugal perde por muito contra Espanha. “Têm um programa de rastreio há uma década e nós começámos há dois ou três anos no Norte, claramente uma iniquidade no acesso”, explica Mário Dinis Ribeiro, diretor da Gastrenterologia no IPO-Porto. Na região, o utente recebe informação em casa sobre o rastreio e pode pedir o envio do kit e depois entregá-lo no centro de saúde, que o contactará para colonoscopia em caso de necessidade. A prática está por generalizar, desde logo à área com maior risco de morte.
4. Próstata
A linha de fronteira separa a vida e a morte. Espanha está no verde e Portugal no encarnado praticamente na totalidade dos seus territórios. É estranho, e mais se torna quando há 104,2 novos tumores por 100 mil espanhóis e 87,7 entre os portugueses. “A diferença pode ser explicada por uma política mais agressiva de diagnóstico precoce em Espanha, com deteção de casos de carcinoma em estádios mais iniciais do que em Portugal. E essa diferença na atuação pode ter ocorrido há mais de 15-20 anos, já que o carcinoma da próstata é uma doença lenta na sua história natural, e apenas refletida nas estatísticas muitos anos mais tarde”, afirma Luís Campos Pinheiro, diretor do Centro de Responsabilidade Integrado de Urologia, no Hospital de São José, em Lisboa. Mas, acrescenta, “pode haver outras explicações, designadamente genéticas, ambientais ou sobretudo alimentares”. Remata: “Portugal, aliás como Espanha, tem hábitos em que a ingestão moderada de vinho tinto e outros produtos (cálcio, carne e gordura, por exemplo, são referidos no atlas) explicam os aumentos nas incidências e na mortalidade.”
5. Pâncreas
É a neoplasia mais temível — apenas 3% a 9% dos doentes estão vivos cinco anos após o diagnóstico — com uma sobrevivência global expectável de apenas 4,6 meses na Europa. “É o único tumor onde a incidência e a mortalidade estão a aumentar, apesar de as causas serem comuns a outros cancros, como tabaco e obesidade, e não é fácil explicar o aumento marcado”, reconhece Carlos Carvalho, diretor da unidade de pâncreas e tumores digestivos da Fundação Champalimaud. Há, no entanto, uma particularidade: “Este tumor está associado ao nível de industrialização”, diz. É talvez por isso que Portugal tem um prognóstico mais favorável do que a menos ruralizada Espanha — terceira causa de morte por cancro do outro lado da fronteira e sexta no nosso país. Razões diferentes, aqui de hábitos nocivos, justificam o facto de, no nosso país, ser o Alentejo a registar um risco de morte superior ao resto do território. Entre as vítimas, os homens são os mais atingidos. “A elevada prevalência de tabagismo ativo, excesso de peso, obesidade, diabetes e consumo de bebidas alcoólicas (com pancreatite crónica associada ao alcoolismo), pode, em parte, justificar as assimetrias”, afirma Ana Caldeira, gastrenterologista do Hospital de Castelo Branco. Ao invés da generalidade dos tumores malignos, “este não é um cancro de velhice”, sublinha o especialista da Champalimaud. “O aumento mais significativo do número de óbitos ocorreu em doentes com idades entre os 50 e os 54 anos, 15 anos abaixo do pico habitual”, acrescenta Ana Caldeira, ex-presidente do Clube Português do Pâncreas com base num estudo sobre a evolução nos últimos 25 anos em Portugal.
6. Estômago
Seja para homens ou mulheres, este atlas mostra que a evolução letal do cancro do estômago é substancialmente evidente entre os portugueses – e a explicação está por encontrar. “Não acredito que a diferença seja pela linha que separa os dois países e ainda menos junto à fronteira, onde os hábitos alimentares, de risco para este cancro, são semelhantes”, afirma Carlos Carvalho, responsável pelos tumores digestivos na Fundação Champalimaud. “Os fatores de risco são tabaco, sal e carne processada, obesidade e a infeção por Helicobacter pylori”, descreve Rui Tato Marinho, diretor da Gastrenterologia e da Hepatologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Para este especialista “poderá haver um maior consumo de sal no nosso país”, ainda assim insuficiente para tamanha diferença. O mesmo é dito para uma particularidade genética que existe nos portugueses e que parece aumentar a suscetibilidade para esta neoplasia. Os autores do estudo são omissos sobre esta fraqueza, mas Carlos Carvalho acredita que “os fatores genéticos existem, contudo não têm tanta importância para uma diferença tão marcada”.
7. Leucemia
Os cancros do sangue com prognóstico fatal são retratados como sendo mais dominantes do lado de cá da fronteira, especialmente entre as regiões do centro e da Grande Lisboa e na população feminina. Os resultados intrigam os especialistas. “Em termos de sobrevivência global, há assimetrias no país para alguns tumores sólidos e hematológicos mas não justifica a concentração da ‘bomba atómica’ em Lisboa ou no centro”, afirma Maria Gomes da Silva, diretora da Hematologia do IPO-Lisboa. “A mancha geográfica poderá revelar também a qualidade dos registos oncológicos. Onde se regista mais, há mais diagnósticos.” E, sublinha, “não se conhece nenhum fator genético que torne a população portuguesa distinta da europeia”. Albertina Nunes, hematologista do IPO-Lisboa é perentória: “Os mapas levantam mais perguntas do que respostas.” Para a especialista, a idade pode explicar, pelo menos, o maior risco de morte entre as mulheres. Vivem mais, logo têm mais doença. Por exemplo, a leucemia linfoide crónica, a segunda mais prevalente, tem uma mediana de deteção aos 71 anos e 15 a 20 anos de sobrevida. Ainda assim, “as leucemias têm o fator sexo masculino como sendo de risco e de mortalidade”, explica a médica. Na origem dos dois cancros do sangue mais comuns, os riscos são tratamentos de quimioterapia e radioterapia ou outras doenças do sangue no caso da leucemia mieloide aguda — embora nos mais jovens nada se encontre — e uma ligação familiar, algo genético ou ambiental (tabaco, químicos, massa corporal, algumas profissões) para a leucemia linfoide crónica.
8. Bexiga
O tabaco é o principal fator de risco e é compreensível que Portugal tenha um cenário mais positivo do que Espanha, com mais fumadores. No entanto, o fumo não explica porque é que o perigo de morte é maior para as mulheres — e, neste caso, sem diferença face às espanholas —, como foi apurado. “O principal responsável pela incidência e agressividade do tumor vesical são os hábitos tabágicos e, por isso mesmo, a incidência e mortalidade no homem são tradicionalmente superiores, embora com uma tendência de aumento nas mulheres em virtude de alteração de hábitos tabágicos”, diz Luís Campos Pinheiro. Os autores do atlas referem também como justificação possível fatores ocupacionais, ingestão de arsénico orgânico através da água ou da comida, e consumo deficitário de fruta e vegetais, o que, ainda assim, tende a ser mais comum entre a população masculina.
9. Esófago
É no norte da Península Ibérica que o risco de morte é superior, sobretudo entre a população masculina, “em cada dez mortos, nove são homens”, salienta Rui Tato Marinho, diretor da Gastrenterologia e da Hepatologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Os maus hábitos são a causa principal. “Álcool, tabaco, obesidade e falta de ingestão de frutos e vegetais” assumem destaque e são mais comuns entre os homens. As mulheres são mais consumidoras de hortifrutícolas e menos de bebidas alcoólicas, ganhando, por isso, alguma proteção extra. E o álcool é particularmente perigoso: “Parece haver evidência de que ajuda a dissolver os componentes químicos oncogénicos do tabaco e a facilitar a sua absorção”, ou seja, beber e fumar são uma mistura explosiva. Rui Tato Marinho não descarta, ainda assim, que as assimetrias, desde logo entre o norte e o sul, se devam à qualidade dos registos.
10. Laringe
O sul do país, com correspondência no país vizinho, concentra a mancha encarnada do risco de mortalidade. “Este cancro está associado ao tabaco, ao álcool e ao vírus do papiloma humano (HPV), e essa é uma das possíveis explicações pela mortalidade no Alentejo, com consumos elevados, e no Algarve, aqui mais pelo HPV associado a práticas sexuais, por exemplo. É também por estes fatores, apesar de tudo menos expressivos nas mulheres, que a população feminina tem um risco menor”, afirma António Araújo. Venceslau Hespanhol acrescenta ainda “a má higiene bucal (as mulheres cuidam-se mais) ou até o tipo de cigarro fumado”. E explica: “Os cigarros sem filtro tendem a agredir a traqueia e a laringe.” Fernando Barata fala “num quadro peninsular” e destaca outra particularidade que pode explicar a diferença notória entre homens e mulheres. “O carcinoma da laringe também tem a ver com a forma como se fuma. Os homens têm muito o hábito de boca, enquanto as mulheres travam mais.” Sobre uma eventual diferença no acesso e qualidade dos cuidados, os especialistas admitem que poderia ser uma condicionante para o Alentejo ou o Algarve, mas não para o sul de Espanha, com Sevilha e Valência “fortes em pneumologia”.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL