O número de casos sobe, o número de mortes também, as escolas primeiro ficaram abertas porque eram seguras e depois mandaram fechá-las porque eram o quê?, o Governo apresentou medidas de confinamento antes do Natal e entretanto medidas de algum relaxamento para esse mesmo Natal e a seguir ao ano novo introduziu novas medidas de confinamento e quase de imediato outras medidas ainda mais duras de confinamento, é o pior momento da pandemia e o melhor momento para respirarmos fundo-bem fundo agora que temos de voltar todos para casa.
É preciso protegermos a nossa saúde, a mental também: Rita Gameiro, psicóloga clínica e membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, fala sobre o impacto de todos estes acontecimentos e da relação que devemos estabelecer com as notícias sobre o vírus e deixa também recomendações para os próprios meios de comunicação social.
Depoimento recolhido por Helena Bento
Por estes dias não é raro encontrar pessoas que deixaram de consumir notícias sobre a covid-19 por ficarem ainda mais nervosas e com mais medo do vírus. Será essa uma boa estratégia? E o que fazer nessas situações? O Expresso desenvolveu um guia de perguntas e respostas para cada um de nós com o contributo de Rita Gameiro, psicóloga clínica e membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytical Association, que deixa ainda recomendações para os meios de comunicação social, onde se observa uma “concentração excessiva em cálculos matemáticos, contabilidade e estatística” e “em algumas ocasiões um aproveitamento do efeito emocional e vulnerabilidade que a atual situação provoca nas pessoas”.
Qual o impacto que as notícias sobre a covid-19 têm sobre mim?
Depende muito do funcionamento de cada pessoa e até mesmo do estado que se encontra a viver naquele momento particular. As notícias sobre o vírus podem ajudar a gerar ou a aumentar os sentimentos de medo e ansiedade, uma vez que são também a reprodução de uma realidade que atualmente apela ao surgimento de sentimentos de impotência e de angústia, dadas as suas circunstâncias. Por outro lado, nos casos em que a pessoa se sente mais capaz de tolerar o contacto com os aspetos mais destrutivos da realidade externa através de mecanismos psíquicos próprios do seu funcionamento, estar informado pode ser gerador de sentimentos de apaziguamento, podendo gerar um sentimento de segurança. Por outro lado, o impacto dessas notícias em cada pessoa também pode depender da natureza da informação a que a pessoa é sujeita. Notícias de carácter mais objectivo e isentas de aspetos emocionais terão à partida um impacto menos nocivo, enquanto as denominadas ‘notícias sensacionalistas’, impregnadas de subtis ou até mesmo evidentes efeitos emotivos, encontram mais facilmente eco nas fantasias de catástrofe provenientes dos estados de angústia das próprias pessoas, ajudando a incrementar esses estados.
Que fatores influenciam esse impacto?
Fatores relacionados com o funcionamento psíquico do próprio indivíduo e fatores relacionados com a natureza e o tipo da informação veiculada.
As notícias sobre a covid-19 deixam-me nervoso e com medo. O que devo fazer?
Pode tentar restringir o contacto com meios de informação noticiosos, acedendo apenas numa determinada hora do dia, ou até mesmo procurar de forma autónoma, através dos canais online, informações provenientes de meios ligados a comunidades científicas reconhecidas, como a Organização Mundial da Saúde ou o Serviço Nacional de Saúde.
Por ser jovem, serei dos mais afetados psicologicamente pelo confinamento, segundo vários estudos. Qual a importância para mim do consumo de informação sobre o vírus?
A informação sobre o vírus poderá contribuir para aceder a uma melhor compreensão sobre que medidas adotar para proteção, podendo assim chegar-se a um equilíbrio benéfico que ajude à manutenção de uma melhor saúde mental perante a atualidade.
“Se o acesso à informação é gerador de maior ansiedade ou angústia, nesse caso será melhor restringi-lo”
Faço parte de um grupo de risco e tenho mais medo do que as outras pessoas. Devo continuar a ver as notícias sobre o vírus?
Aceder a informação pode ser um meio de ficar a conhecer melhor a realidade e, consequentemente, ajudar a proteger-se e lidar com a exigência dessa realidade. Porém, se o acesso a essa informação é geradora de maior ansiedade ou angústia, nesse caso será melhor restringi-lo. Poderá, nessa situação, procurar meios de apoio psicológico, atualmente existentes de forma gratuita, para que o contacto com a realidade possa ser mais bem tolerado, ajudando a compreender melhor a origem da angústia.
Foto D.R.
Tenho filhos pequenos. Devo manter a televisão ligada em casa nos canais de notícias?
No caso das crianças, em particular em idades mais precoces, é preferível que sejam os pais ou os principais cuidadores a servir de tradutores da realidade existente. A criação de momentos de diálogo, mesmo sobre assuntos mais delicados e difíceis de abordar, permite que surjam momentos de perguntas ou outras formas de expressar a preocupação por parte das crianças, criando simultaneamente oportunidades de se sentirem compreendidas nas suas angústias. Deve ser sempre tida em atenção a idade e o nível de compreensão da criança. No entanto, pais educadores também devem ter a capacidade de gerir o tipo e a quantidade de informação a que uma criança tem acesso, dependendo da idade em que se encontra.
Se mantiver a televisão ligada e os meus filhos fizerem perguntas, por exemplo, sobre o número de mortos, o que devo responder?
Depende da idade da criança e da perceção dos pais sobre o acesso e compreensão da realidade por parte dos filhos. Deve sempre ter-se em consideração que uma pergunta pode vir acompanhada de um estado que a criança manifesta, procurando no adulto não apenas a resposta a essa questão mas sobretudo um sinal de apaziguamento e tranquilidade. Dependerá sempre de o adulto ser capaz de aceder ao estado interno da criança perante uma questão dessa natureza. O confronto com a realidade externa pode fazer com que a criança entre em contacto com fantasias ou dúvidas sobre questões fundamentais relacionadas com o seu próprio desenvolvimento, como é o caso das questões ligadas à morte ou à doença. Pode ser uma oportunidade de os pais se mostrarem disponíveis para acompanharem os filhos no confronto com questões dessa natureza. Muitas vezes a expressão de tais questões em particular correspondem a fantasias que a criança está no momento a viver no seu mundo interior, dirigindo-as para os elementos próximos e mais importantes que constituem o seu mundo. Se essas situações criarem dificuldades nos próprios pais, podem sempre procurar a ajuda de profissionais de saúde mental que os ajudem a estabelecer com os filhos uma melhor comunicação baseada na compreensão das suas angústias.
“Os canais de notícias podem ser vistos como uma fonte de informação, mas serem encarados como uma companhia é revelador do grau de solidão em que alguém se encontra”
Sou idoso e vivo sozinho. Os canais de notícias são uma boa companhia para mim?
Os canais de notícias podem ser vistos como uma fonte de informação, mas serem encarados como uma companhia é revelador do grau de solidão em que alguém se encontra. Por vezes, o contacto com a televisão cria em pessoas mais isoladas e sós o sentimento de se sentirem acompanhadas. Embora a televisão possa ter uma função importante na vida dessas pessoas, é sempre preferível manter o investimento na procura da relação humana. Em casos onde essa possibilidade não seja viável, dadas as restrições de contacto atuais, deve ser feito um esforço para criar soluções alternativas, mesmo que à distância.
Foto D.R.
Já não tenho interesse nas notícias sobre o vírus. É mau sinal?
O desinteresse pode ser representativo de um sentimento interno de exaustão e intolerância perante uma situação que já dura há muito tempo, criando uma necessidade de afastamento por saturação. O sentimento pode ser compreendido como a necessidade de criar um espaço interno menos saturado de informações relacionadas com a realidade externa e indicador da necessidade de encontro de um refúgio interno onde a pessoa se possa sentir mais em contacto consigo mesma e menos impregnada dos efeitos da realidade que a envolve. A necessidade de evasão pode ser um mecanismo de proteção perante realidades que geram angústias difíceis de tolerar.
Acho que a comunicação social está demasiado focada nos números da pandemia e na tragédia. Terei razão?
Possivelmente sim, tendo em conta que um dos meios de tentativa de controlo de angústia como aquela que nos encontramos a viver há já vários meses tem como base a concentração excessiva em cálculos matemáticos, contabilidade e estatística, na tentativa de exercer e adotar mecanismos de controlo perante uma realidade que desencadeia sentimentos de impotência, descontrolo e angústias de morte. Na minha opinião, os meios de comunicação não estão praticamente a ajudar a conter e a tolerar estes momentos desafiantes e exigentes.
“(…) Cria-se por vezes um movimento perverso em que os meios de comunicação social, órgãos responsáveis pela difusão de informação, aproveitam o estado de vulnerabilidade e incerteza em que as pessoas vivem para contaminar e incentivar a criação de um maior estado de angústia”
Como é que os órgãos de comunicação social podem então ajudar a conter e a tolerar estes “momentos desafiantes e exigentes”?
Tal poderia ser feito através da adoção de outro tipo de linguagem ou na escolha de outros representantes que transmitam perspetivas diferentes e mais construtivas e úteis para a manutenção da saúde mental na sociedade. Temos assistido, em algumas ocasiões, ao aproveitamento do efeito emocional que a atual situação provoca nas pessoas, criando-se por vezes um movimento perverso em que os meios de comunicação social, órgãos responsáveis pela difusão de informação, aproveitam o estado de vulnerabilidade e incerteza em que as pessoas vivem para contaminar e incentivar a criação de um maior estado de angústia. A comunicação social, que detém uma relação de proximidade com os seus telespectadores, deveria ser mais isenta de tais ações, por vezes dissimuladas em pequenos comentários. O rigor da informação deveria contemplar a oferta de perspetivas variadas e mais diversificadas, suportadas na verdade e no reconhecimento científico. Esse papel de enorme importância deveria estar na primeira linha de qualquer canal noticioso.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso
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