Contam-nos alguns videntes, com demónios no corpo, que as aves de rapina de vidas novas vão, de novo, assaltar os moços para uma inevitável guerra de gente graúda, que fede a odores de Idade Média.
Num tempo apressado, que fustiga as memórias e ativa uma raiva explosiva, questionamo-nos, em vão, que diabo vai na cabeça dos homens, que não param com a asselvajada truculência da ceifa das vidas uns dos outros.
Quem poderia pensar ou admitir que o século XXI seria chamado ao sufoco dos pavores do inferno, com a brutalidade de agressões irracionais tão destrutivas da barbárie, que voltou a descer à terra com o fato e a gravata dos conchavos políticos.
Assaltada pelo terror do rufar dos tambores, a Europa já salta perdigotos da boca, com o inevitável rearmamento, para o desvario da guerra que insiste em desarrumar e podar vidas.
Civilizados e bárbaros, por conta de um desrespeito patriótico não ir para a guerra, voltarão a encontrar-se na mesma viagem sem regresso. E a História repetir-se-á, por entre predadoras economias de casino, que abusivamente nos jogam na compliance da roleta russa.
Eu, que não sei nada de geopolítica e das suas multipolaridades marcantes, vitaminado apenas com o inesquecível vómito escolar do óleo de fígado de bacalhau, pergunto-me, enfurecido, se não teria sido melhor Deus ter feito os ucranianos russos, para que estes não se dessem ao trabalho de os exterminar.
Olho para os árabes e questiono-me se, na atual hibridez contemporânea, não poderiam ter nascido judeus e vice-versa. Acaso uns e outros não são filhos de uma acidentada jornada de “girinos” com cabeças gigantes e caudas finas, que mal sabem nadar?
Andamos tão entorpecidos, com as nossas vidas quotidianas, que nos tornámos estranhamente humanos. À morte televisiva de um ou dois indivíduos que, na Europa, tombam por um qualquer golpe de arma branca, benzo-me e persigno-me por tão tresloucada barbárie. Todavia, no âmago das grandes tragédias que, incessantemente, vão empilhando os corpos das vítimas, nem me dou ao trabalho de as contar.
Não sei como esses coveiros, que fazem da Terra um cemitério de desvarios, conseguem apagar trilhos e pegadas de gente, com tão desastrosas proporções para as vidas que varrem do mapa.
Talvez que eles só tenham conhecido a paz como aquilo que ela sempre foi, um simples compasso, uma mera fase letárgica da guerra. Talvez nunca tenhamos deixado de içar de bandeiras, continuando a acudir à guerra com evocações de regresso ao sagrado, sentindo mais segurança nela tendo os deuses como amuleto.
Os deuses sempre cuidarão de não deixar os homens desnudados na sua barbárie mais absoluta. Neste mundo moribundo, eles continuam a precisar de convocar crenças ortodoxas, bíblicas, corânicas, embora pressintam que os deuses só possam estar pálidos e abatidos com estas suas gentes.
Será preciso inventar novos deuses que, com estrondo, sejam capazes de proteger terras raras de maus olhados, que garantam um apoteótico desfecho da vida, que evitem o sofrimento com tanta incerteza quanto àquele predicativo futuro, que sempre insiste fazer da vida o cadafalso de um “eterno retorno”.
Dito isto, que importam estas considerações desarmadas ao valor da vida humana se, apesar de tudo, ainda é possível contar com o aconchego das igrejas e, se, com um RIP para aqui, outro para ali, os homens poderão continuar a enxertar neles o descanso das consciências.
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