A mortalidade por erros médicos é uma realidade frequentemente silenciada em muitos sistemas de saúde, incluindo o português. A Easy Social Medical Claim estimou em 2020 que, anualmente, entre 1300 e 2900 pessoas percam a vida em Portugal como consequência de negligência médica, uma taxa que supera a de acidentes de viação, um número alarmante e, talvez, inesperado para muitos. Contudo, a dificuldade em obter dados específicos sobre a negligência médica no país continua a ser um obstáculo para avaliar a dimensão deste problema de saúde pública.
A questão da mortalidade iatrogénica – mortes causadas por intervenções médicas ou hospitalares – tem sido amplamente discutida em estudos internacionais. Nos Estados Unidos, uma pesquisa publicada no British Medical Journal em 2016 revelou que os erros médicos representam a terceira causa de morte, logo a seguir a doenças cardíacas e ao cancro, com cerca de 251.000 óbitos anuais. O estudo também revelou a dificuldade de quantificar exatamente os óbitos causados por erros médicos, devido à variabilidade nos registos e à ausência de categorias específicas de erro médico nos certificados de óbito.
Em Portugal, não há estimativas oficiais sobre o número médio de mortes que um médico possa causar inadvertidamente ao longo da sua carreira. Tal cálculo é, na verdade, complexo, pois depende de variáveis como a especialidade, o ambiente de trabalho, a experiência profissional e as práticas de segurança implementadas. Médicos que lidam com casos de alta complexidade enfrentam maiores riscos de erros, especialmente quando operam em condições de elevada pressão e com recursos limitados.
Além das fatalidades, há que considerar as consequências permanentes para muitos pacientes que sobrevivem a erros médicos, mas ficam marcados por lesões irreversíveis. Em muitos casos, os afetados enfrentam barreiras ao tentar obter justiça e compensação pelos danos sofridos. O processo judicial é lento e oneroso, exigindo perícias médicas complexas que muitas vezes apenas aumentam a carga emocional e financeira para as famílias envolvidas.
Estudos sugerem que a prevenção de erros médicos passa, em grande parte, pela implementação de melhores práticas de segurança no ambiente hospitalar. Países como a Alemanha e os Estados Unidos têm investido em sistemas de controlo rigorosos, resultando em significativas reduções de mortalidade iatrogénica. Contudo, para que Portugal possa alcançar melhorias semelhantes, é imperativo que haja uma maior transparência na notificação de erros médicos, além de apoio psicológico para os profissionais de saúde envolvidos. Afinal, os médicos são “a segunda vítima” nesses incidentes, enfrentando pressões emocionais intensas após um erro fatal.
A segurança dos pacientes deve ser uma prioridade constante e, para isso, é necessário um compromisso coletivo de todos os envolvidos no sistema de saúde. Portugal necessita de dados mais concretos e de políticas eficazes que reforcem a segurança e que assegurem a qualidade dos cuidados prestados, de forma a minimizar o número de mortes evitáveis. Só com uma abordagem transparente e uma cultura de responsabilidade poderemos garantir que o atendimento médico seja uma fonte de cura e não de sofrimento.
NOTAS: Existem alguns estudos e relatórios amplamente citados sobre mortalidade iatrogénica, particularmente em países como os Estados Unidos, que tentam quantificar a mortalidade resultante de erros médicos e avaliar a extensão do problema. Estes são alguns dos mais conhecidos:
1. Estudo do Institute of Medicine (IOM) – “To Err is Human” (1999)
- Este relatório, publicado pelo Institute of Medicine (agora conhecido como National Academy of Medicine), foi um dos primeiros a destacar a mortalidade iatrogénica como uma questão de saúde pública. O estudo estimou que entre 44.000 e 98.000 pessoas morriam anualmente nos EUA devido a erros médicos evitáveis.
- Este relatório abriu portas para a discussão sobre segurança do paciente e desencadeou mudanças importantes no sistema de saúde para minimizar erros.
2. Estudo do British Medical Journal (BMJ) – “Medical Error: The Third Leading Cause of Death in the US” (2016)
- Este artigo, publicado no BMJ, foi realizado por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, que analisaram os dados de vários estudos anteriores e estimaram que os erros médicos poderiam ser responsáveis por aproximadamente 251.000 mortes por ano nos Estados Unidos.
- Os autores apontaram que, se considerados oficialmente, os erros médicos seriam a terceira principal causa de morte no país, após doenças cardíacas e câncer.
- O estudo também revelou a dificuldade de quantificar exatamente os óbitos causados por erros médicos, devido à variabilidade nos registos e à ausência de categorias específicas de erro médico nos certificados de óbito.
3. Relatório do World Health Organization (WHO) – “Patient Safety: Global Action on Patient Safety” (2019)
- Este relatório da OMS destacou que em países de alta renda, um em cada 10 pacientes sofre algum tipo de dano nos cuidados hospitalares, sendo cerca de metade desses danos evitáveis.
- A OMS estimou que os erros médicos evitáveis resultam em milhões de mortes em todo o mundo, sobretudo em países de baixa e média renda, onde os sistemas de saúde ainda enfrentam maiores dificuldades de recursos e infraestruturas.
4. Estudos de revisão sistémica e meta-análise
- Estudos de revisão sistemática, que avaliam dados de múltiplos hospitais e sistemas de saúde, identificaram que os erros médicos ocorrem entre 5-15% das hospitalizações em todo o mundo.
- Algumas meta-análises também tentaram identificar categorias específicas de erro (como erros de diagnóstico, medicação e procedimentos cirúrgicos), que apresentam um risco mais elevado de resultar em fatalidades.
- Embora estas revisões sejam muito úteis, há limitações quanto à extrapolação dos dados para uma escala mais individual ou para estimar a média de óbitos associados a um único médico ao longo da sua carreira.
5. Estudos focados no impacto emocional nos profissionais de saúde
- A pesquisa sobre o impacto psicológico nos médicos envolvidos em eventos adversos, conhecida como “o segundo impacto” ou “second victim”, sugere que o envolvimento em incidentes de mortalidade iatrogénica pode ter efeitos emocionais profundos nos profissionais de saúde.
- Estudos neste campo sublinham a importância de suporte psicológico para reduzir o impacto dos erros na saúde mental dos médicos e promover uma cultura de segurança no ambiente de trabalho.
- Há livros que exploram temas relacionados à mortalidade iatrogénica, erros médicos e segurança do paciente, mas são raros os que tentam quantificar explicitamente o número de mortes atribuídas a um médico individual ao longo de uma carreira. A maioria dos autores foca-se em abordar o sistema de saúde, os processos institucionais e as práticas médicas de uma forma que minimize os erros.
Estes são alguns dos livros mais influentes e reconhecidos sobre estes temas
1. “To Err is Human: Building a Safer Health System” [Errar é humano: construindo um sistema de saúde mais seguro] – Institute of Medicine (IOM)
- Este livro é uma continuação do famoso relatório de 1999 que foi pioneiro em destacar os erros médicos como um problema de saúde pública. A obra examina o impacto dos erros médicos, os sistemas e práticas que contribuem para esses erros, e propõe estratégias para melhorar a segurança do paciente.
2. “The Checklist Manifesto: How to Get Things Right” [O manifesto da lista de verificação: como fazer as coisas corretamente”] – Atul Gawande
- Neste livro, o Dr. Atul Gawande discute a importância das listas de verificação como ferramenta para evitar erros em áreas complexas como a medicina. Ele argumenta que, com um sistema mais organizado e simplificado, é possível reduzir significativamente os erros e, por consequência, as mortes evitáveis. O autor partilha exemplos práticos de como as listas de verificação podem salvar vidas no ambiente hospitalar.
3. “Complications: A Surgeon’s Notes on an Imperfect Science” [Complicações: anotações de um cirurgião sobre uma ciência imperfeita] – Atul Gawande
- Neste livro de memórias e ensaios, Atul Gawande reflete sobre os desafios éticos e práticos da medicina, incluindo a possibilidade de erro e as suas consequências. Ele explora a vulnerabilidade humana e a natureza imperfeita da ciência médica, abordando casos em que o erro médico teve consequências graves e as lições aprendidas.
4. “How Doctors Think” [Como os médicos pensam] – Jerome Groopman
- Jerome Groopman explora o processo de tomada de decisão médica e como os erros de diagnóstico podem resultar em consequências graves para os pacientes. Este livro é uma análise dos fatores cognitivos e emocionais que influenciam os médicos na prática clínica, incluindo erros e como estes podem ser evitados.
5. “Unaccountable: What Hospitals Won’t Tell You and How Transparency Can Revolutionize Health Care” [Inexplicável: o que os hospitais não lhe dizem e como a transparência pode revolucionar os cuidados de saúde] – Dr. Marty Makary
- Este livro expõe problemas de segurança nos hospitais, defendendo uma maior transparência para melhorar a segurança do paciente. Makary, também um pesquisador da mortalidade iatrogénica, aborda a cultura de segurança no ambiente hospitalar e como a falta de transparência contribui para a persistência de erros médicos.
6. “Being Mortal: Medicine and What Matters in the End” [Ser mortal: medicina e o que importa no final] – Atul Gawande
- Embora este livro se foque mais no tratamento de doentes terminais e nos cuidados paliativos, ele reflete sobre as limitações e falhas da medicina, incluindo a morte iatrogénica. Gawande discute como os médicos, no seu esforço de salvar vidas, podem inadvertidamente causar danos.
7. “The Patient Survival Guide: 8 Simple Solutions to Prevent Hospital- and Healthcare-Associated Infections” [Guia de sobrevivência do paciente: 8 soluções simples para prevenir infeções hospitalares e associadas à assistência à saúde] – Dr. Maryanne McGuckin
- Este livro oferece uma perspetiva sobre como os próprios pacientes podem contribuir para evitar infeções e outros danos durante a hospitalização. Aborda o tema dos eventos adversos no ambiente hospitalar, sendo uma boa leitura para entender como prevenir fatalidades evitáveis.
8. “Internal Bleeding: The Truth Behind America’s Terrifying Epidemic of Medical Mistakes” [Sangramento interno: a verdade por trás da terrível epidemia de erros médicos nos Estados Unidos] – Robert M. Wachter e Kaveh Shojania
- Este livro examina histórias reais de erros médicos e as razões sistémicas por trás deles, abordando a mortalidade resultante de tais erros. Os autores, médicos e especialistas em segurança do paciente, discutem formas de melhorar o sistema de saúde para reduzir eventos adversos.
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