Há uma perceção — e em muitos casos uma prática — que se vai entranhando no funcionamento de múltiplos serviços públicos: a ideia de que o Estado tem sempre razão. Não consta de nenhum diploma legal, não é ensinada em nenhuma escola de administração pública, e dificilmente algum responsável político ousaria formulá-la abertamente. Mas está lá. Opera como um princípio tácito, instalado nas rotinas, nos reflexos burocráticos e até na linguagem quotidiana.
Chamo-lhe um princípio perverso precisamente porque não existe formalmente; não precisa de existir para produzir efeitos reais e profundos.
A assimetria estrutural que favorece o desequilíbrio
A Administração Pública é, por natureza, dotada de poderes de autoridade e de uma posição de supremacia: presume-se a legalidade dos seus atos, detém meios técnicos, tem tempo institucional e recursos para sustentar posições. O cidadão, pelo contrário, enfrenta a máquina administrativa, normalmente, sozinho, com menos informação, menos recursos e menos capacidade de insistir.

Jurista
O Estado não é infalível — e não deve comportar-se como tal. Uma Administração que parte do princípio de que tem razão antes mesmo de analisar a razão do cidadão não cumpre a sua função constitucional
É esta assimetria que, quando mal gerida, transforma a presunção de legalidade num vício subtil: uma presunção de razão.
Quando o Estado decide, entende-se — quase automaticamente — que decidiu bem.
E quando o cidadão discorda, a reação tende a ser defensiva: se não está satisfeito, recorra aos tribunais.
A abdicação da verdade material
O Direito Administrativo português consagra claramente o princípio da descoberta da verdade material: a Administração deve procurar a realidade efetiva dos factos e tomar decisões justas, mesmo que isso implique rever posições ou reconhecer erros.
Mas a prática quotidiana mostra um desvio preocupante. Perante situações minimamente controversas, a reação inicial já não é perguntar “o que realmente aconteceu?”, mas sim “como defendemos a decisão que tomámos?”.
A consequência é uma cultura interna de autojustificação, em vez de uma cultura de serviço.
É aqui que nasce a perversidade: o Estado deixa de procurar a verdade para procurar ter razão.
Os tribunais como último reduto… ou como muro dissuasor
Dizer a um cidadão que “se não concorda, vá ao tribunal” pode parecer o exercício normal de um direito.
Mas esta afirmação, usada em modo automático, converte-se num mecanismo de pressão que o Estado conhece bem:
- os custos judiciais são elevados;
- o tempo de decisão pode chegar a anos;
- a incerteza é grande;
- a carga emocional e prática é pesada.
O cidadão que tenta defender um direito vê-se forçado a medir forças com uma entidade que tem tempo ilimitado, recursos humanos e financeiros que não saem do seu bolso, e uma organização que pode recorrer indefinidamente.
Assim, o acesso à justiça deixa de ser uma garantia e transforma-se numa barreira.
E o Estado, consciente dessa realidade, torna-se tentado a não emendar decisões que sabe que dificilmente serão contestadas.
É uma perversão jurídica, funcional e ética.
Porquê este fenómeno?
Convém distinguir causas estruturais de causas culturais:
1. Causas estruturais
Processos complexos, legislação prolixa, procedimentos rígidos.
Falta de meios que leva os serviços a optarem pela solução menos trabalhosa: confirmar o que já está feito.
Excesso de carga administrativa que transforma o funcionário em gestor de filas, não em gestor de justiça.
2. Causas culturais:
A ideia hierárquica de que admitir erro fragiliza o serviço.
A visão tradicional da Administração como “autoridade” e não como “prestadora de serviço público”.
A persistência de uma cultura interna onde o cidadão é visto como potencial obstáculo e não como razão de ser do Estado.
O efeito corrosivo na confiança pública
A confiança entre Estado e cidadão não se degrada apenas em grandes escândalos.
Degrada-se nas pequenas interações do quotidiano:
- num pedido de informação respondido com arrogância,
- num erro evidente que ninguém corrige,
- numa reclamação tratada como incómodo,
- numa resposta padronizada que não lê o caso concreto,
- num processo onde ninguém procura a verdade, apenas a defesa do ato.
A certa altura, o cidadão passa a acreditar que o Estado não é parceiro, mas adversário.
E quando isso acontece, perde-se a legitimidade relacional que sustenta a própria Administração.
A solução não é revolucionária: é cultural
Não é preciso reescrever códigos nem reinventar o Estado.
O que é necessário é mais difícil: uma mudança de cultura.
1. Reconhecer a possibilidade do erro
Um Estado forte não é o Estado que nunca erra — é o que corrige os seus erros sem medo.
2. Recentrar o papel do funcionário
O funcionário não é defensor de atos administrativos; é garante do interesse público.
E o interesse público é, na maioria dos casos, encontrar a decisão verdadeira e justa.
3. Reforçar a ideia de que o cidadão não é inimigo
O cidadão não é alguém que “perturba o normal funcionamento dos serviços”.
É alguém a quem os serviços existem para servir.
4. Promover a mediação e revisão administrativas
Criar mecanismos simples e eficazes de revisão interna de decisões seria uma forma de devolver equilíbrio à relação.
Conclusão: a democracia mede-se também na humildade do Estado
O Estado não é infalível — e não deve comportar-se como tal. Uma Administração que parte do princípio de que tem razão antes mesmo de analisar a razão do cidadão não cumpre a sua função constitucional.
A relação Administração–cidadão deve ser saudável, transparente e baseada na verdade, não na imposição.
Um Estado que escuta, corrige e revê é mais forte do que um Estado que insiste, ignora ou intimida.
A democracia vive da confiança.
E a confiança nasce quando o poder — especialmente o poder público — tem a coragem de não querer ter sempre razão.
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