Na passada sexta-feira foi aprovado no Parlamento o projeto de lei do CHEGA que prevê a proibição do uso da burca, pelas mulheres, no espaço público, com os votos a favor do PSD, CDS e Iniciativa Liberal. Acorda-se um retrocesso legislativo que só serve para aquecer os pés da direita conservadora e anti-liberal, sob o mote da defesa da opressão da mulher, que nem chega perto de resolver.
Em primeiro lugar, importa destrinçar a premissa que esteve na base da fundamentação da proposta. Ora, a burca distingue-se do hijab na medida em que traduz uma forma mais completa de cobertura, incluindo o rosto da mulher. Os ocidentais opositores ao seu uso baseiam-se no frágil e básico argumento de que simboliza a opressão da mulher.
Tal generalização não podia estar mais errada, vejamos. Na génese histórica dessa peça de roupa está a proteção contra o clima desértico. As mulheres começaram a usá-la para se protegerem do sol forte, vento e areia, isto é, os fatores ambientais e climatéricos estiveram na base do seu uso, e não, inicialmente, fatores culturais e de género, como se pensa.
Em segundo lugar, a burca simboliza modéstia e identidade religiosa. Embora haja deputados que afirmem que o apelo ao seu uso não vem expresso no Corão, há teólogos que assim o contradizem. Trata-se, por isso, da constituição de um impedimento à liberdade de religião, constitucionalmente consagrada (artigo 41º CRP) e que deve caber somente a quem partilha dessa fé, na minha leitura, uma vez que afronta maior para a mulher seria a de ser obrigada a destapar-se.
Em terceiro lugar, preconizar o clássico modus operandi, típico dos governos autoritários de direita, que é o da regulamentação do corpo da mulher, é algo que já devia ter sido ultrapassado. Afinal, não são os homens que usam burcas. O verdadeiro exercício da liberdade não pode ser concretizado através de uma proibição. Espanta-me, nesse sentido, o apoio da Iniciativa Liberal à hipocrisia do argumento. O clímax da liberdade está em não subscrevermos a tese do outro, mas ainda assim, em aceitámo-la.
Em quarto lugar, basear-se na premissa de que todas as mulheres que usam a burca fazem-no porque são oprimidas é uma perspetiva errónea e de ignorância ocidental. Maior gravidade teria uma proibição geral por imposição estadual, de uso da burca, do que uma eventual proibição por imposição conjugal, a de mostrar a pele.
Em relação à questão da segurança, penso que o problema não se coloca no nosso país. É verdade que foram registados, noutros locais, casos de crimes perpetrados por indivíduos que se escondem por trás dessas peças, mas não me parece que se justifique uma limitação à liberdade de religião para proteger o direito à segurança que não está a ser violado (art.27º).
Como sexto argumento, note-se que, mesmo que se considerem alguns casos de opressão, o projeto de lei não resolve verdadeiramente o problema, constituindo uma afronta que só o é por não ser uma fé partilhada, isto é, diferente do que a maioria dos portugueses comunga.
Trata-se, por conseguinte, de mais uma manifestação de intolerância da direita conservadora, que constantemente provoca e desafia um modelo cultural que lhe é diferente, escondendo-se por trás do pretexto de uma causa nobre que, para além de não resolver, recorre a um erróneo modus operandi. Um Estado que se mete no guarda-roupa, uma intolerância que se perpetua, uns eleitores agradados, mas as mulheres nunca ouvidas.
Leia também: Autárquicas 2025: O balanço | Por Adriana Martins
















