“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes
que precisarás de passar para atravessar o rio da
vida. (…) Existe no mundo um único caminho por
onde só tu podes passar. Aonde leva? Não
perguntes, segue-o!”
Nietzsche
O Rio Guadiana une dois países e é testemunha da história de dois povos irmãos que mantêm a sua memória viva ao redor de um rio. Assim como um cordão umbilical que os une enquanto um só povo, através dos seus afluentes e da sua bacia.
O Baixo Guadiana representa essa memória de dois povos que compartilharam uma tradição, usos e costumes.
Os rios foram as grandes vias de comunicação antes das estradas. Ao longo de vários séculos povos como os Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes navegaram pelo Guadiana e instalaram-se pelos séculos fora nas suas margens, deixando elementos culturais que persistem até hoje nos usos e nos costumes das gentes locais.
Certamente foram recursos como o sal do estuário e o minério da zona das Minas de São Domingos e Pomarão, que o rio permitia escoar, que justificaram, em grande medida, a fixação dos primeiros povos.
No caso de Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana, duas comunidades separadas e ao mesmo tempo unidas pelo rio, procuram potenciar a sua herança milenar comum. Cada vila à sua maneira, são exemplo de como um rio pode unir duas comunidades, que em certas alturas da história não estiveram tão próximas.
A construção de uma ponte entre as duas povoações tem sido um sonho acalentado por grande parte dos habitantes de cada vila. Em 1999 surgiu a Associação Transfronteiriça Alcoutim Sanlúcar (ATAS) que se movimentou e mobilizou vontades pela construção da ponte.
Umas vezes com mais acções junto do poder central, outras com reuniões em Espanha. Umas com avanços, outras com recuos, mas finalmente foram apontadas, há poucos meses, possíveis datas para a concretização de um sonho destas populações.
Tendo em conta a actual situação política, ainda muita água correrá, até à ponte!
Carlos Brito esteve na origem desta Associação, à qual presidiu vários anos. A presidência era alternada entre as duas vilas raianas.
Trabalhei de perto com Carlos Brito na direcção da Associação ATAS e de facto o seu entusiasmo é contagiante. Toda uma imensa experiência de vida que tem colocado ao serviço de Alcoutim com uma dedicação e jovialidade que fazem deste ex-resistente um artífice de pontes culturais.
A ATAS para além de ter tido como missão a criação de uma ponte física, criou pontes culturais e desenvolveu iniciativas que aproximaram os habitantes das duas vilas transfronteiriças.
Quando leccionava na Universidade do Algarve integrei simultaneamente um projecto de investigação com a Universidade de Huelva, financiado pelo Programa de iniciativa comunitária “INTERREG III Espanha-Portugal”.
Esse projecto pretendia conhecera realidade social de vários municípios transfronteiriços (Alentejo, Algarve e Andaluzia). Coube-me ir para o terreno em três municípios com fronteira com Espanha: Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim.
Antes do trabalho neste projecto aqui referido, eu apenas conhecia Alcoutim através do estudo de Cristiana Bastos intitulado Os Montes do Nordeste Algarvio, que citei várias vezes na minha tese de mestrado sobre Ecoimigração enquanto dinâmica migratória para espaço rural.
Criei o conceito de Ecoimigração e em Alcoutim resolvi estudar os estrangeiros que viviam no Rio Guadiana no âmbito da minha investigação do doutoramento em Sociologia Rural e Urbana.
Até ser convidada para colaborar com a ATAS não sabia que Carlos Brito escrevia poesia, nem ele sabia que eu também escrevia. De facto todo o trabalho com poesia pelo meio se torna mais leve e ao mesmo tempo mais profundo, porque a poesia é como um rio que nos corre pelas veias.
Realizámos actividades transfronteiriços, também com os Poetas do Guadiana e de facto a ATAS foi uma Associação que criou laços entre as pessoas e amizades fraternas.
O território do Baixo Guadiana é muito rico e tem grande valor etnológico e etnográfico ao alcance de todos, por isso tem de ser preservado como herança dos povos que o habitaram. E onde, hoje, podemos usufruir das tradições e dos costumes, bem como da sua gastronomia.
A passagem ilegal da fronteira de outrora (contrabando de produtos de consumo) deu lugar à cooperação. Até deu lugar a uma experiência ímpar entre dois países e que adorei: Deslizar 720 metros sobre o rio, de uma margem para outra, a vários metros de altitude, no único slide transfronteiriço do mundo!
Foram criadas várias pontes (culturais, sociais, religiosas, políticas, económicas e poéticas), ou seja, as “pontes” estão criadas independentemente da ponte se concretizar ou não.
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico