Que tem a dizer Pessoa – poeta pensador por excelência – sobre o pensamento? Sem pretender uma amostra exaustiva deste autor tão profícuo, proponho que atendam comigo a esta fugaa 5 vozes —work in progress —que continuará a compor-se oralmente durante o Café Filosófico deste mês.
Comecemos pelo mestre: Alberto Caeiro tem uma vida muito curta, falece aos 26 anos de idade, e estudou apenas até à quarta classe. Contudo, é ele o mestre de Ricardo Reis, formado em medicina, de Álvaro de Campos, engenheiro naval, e do próprio Fernando Pessoa ortónimo. Caeiro encarna a ingenuidade de uma criança que vive no encantamento das sensações imediatas, predominantemente visuais, acolhendo a cada instante o que a natureza oferece. Eis um excerto do seu poema O Guardador de Rebanhos: “Creio no Mundo como num malmequer,/ Porque o vejo. Mas não penso nele/ Porque pensar é não compreender…/ O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)” Pensar aparece aqui como uma actividade doentia, uma consequência de um mau funcionamento do órgão da visão, sentido eleito no modo de interacção com as coisas. O mundo é para ser visto e não pensado. Só a visão reifica, o pensamento tergiversa.
Ricardo Reis, primeiro discípulo, reitera o seu mestre Alberto Caeiro, como podemos comprovar pela seguinte estrofe: “Para quê complicar inutilmente,/ Pensando, o que impensado existe?/ Nascem Ervas sem razão dada —/ Para elas olhos, não razões, tenhamos/ Como através de um rio as contemplemos.”
Álvaro de Campos, segundo discípulo de Caeiro, escolherá o sentir ou o pensar? Vejamos o que nos diz em Poesias:
“Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o Verão quente do dia.
Não estou pensando em nada, e que bom!
Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida…
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas.
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada…”
Durante dois terços do poema Campos parece concordar com Caeiro e Reis: pensar em nada é maravilhoso! O sentimento pode agora ocupar todo o espaço perceptivo. Pensar em nada permite ter “a alma própria e inteira” e “é viver intimamente o fluxo e refluxo da vida”. Porém, o último terço do poema vem dar conta de um desconforto: pensar em nada é um “amargo de boca na alma”, ou um “encostar-se mal” que provoca dores. Na sua complexidade, Álvaro de Campos não parece conseguir ser inteiramente poeta e viver no deleite do sentir. Por outro lado, ao dar-se conta da actividade de pensar em si mesma, sem que seja exercida sobre um objecto em concreto, o mal estar instala-se. O último terço do poema é uma voz dissonante.
Fernando Pessoa ortónimo, também discípulo de Caeiro, diz-nos no seu Primeiro Fausto: Não é o vício/ Nem a experiência que desflora a alma:/É só o pensamento. (…)/ Só pensar/ Desflora até ao íntimo do ser./ Este perpétuo analisar de tudo,/ Este buscar duma nudez suprema/Raciocinada coerentemente,/É que tira a inocência verdadeira (…)/ Pensar, pensar e não poder viver! (…)/ O que é perder a inocência toda…/ Não a inocência vã do corpo ao olhar,/ Ou vulgar e banal conhecimento,/Mas a inocência bela do viver;/De sentir (…)”. Pessoa concorda com Caeiro, Reis, e com os primeiros dois terços da poesia de Campos ao considerar a actividade de pensar inadequada para o acesso ao mundo. A expansão da lucidez atenta contra a vida e aniquila a inocência da alma. O poeta parece retomar aqui o tema da queda do paraíso: precisamente no momento em qua a inocência acaba o pensamento acontece.
Em contraponto com as visões expostas por Caeiro, Reis, Pessoa e os primeiros dois terços da poesia de Campos situa-se o semi-heterónimo Bernardo Soares: “Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, e que a maioria pensa com a sensibilidade e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar”. Para Soares o pensamento não atenta contra a vida nem contra o sentir, pelo contrário, a actividade de pensar nutre-se do sentimento e só o pensar se constitui em vida verdadeira.
A problemática relação entre a vida e o pensamento surge na filosofia desde a sua génese. Já no diálogo Fédonde Platão encontramos um exemplo paradigmático de como vida e pensamento mutuamente se agridem: Sócrates propunha aos homens um caminho de salvação que era simultaneamente uma preparação para a morte. Filósofo era aquele que estava maduro para morrer. Os órgãos dos sentidos aparecem como propiciadores da desgraça do humano, pois fazem-no pender para o que é contrário à sua verdadeira natureza: “Na verdade, cada sentimento de prazer ou dor é como pregos que fixassem a alma ao corpo; e assim a agrafam a ele, a enleiam na substância corporal, por tal forma que tudo aquilo que o corpo lhe disser ela toma por verdadeiro.” (Platão, Fédon, 83 d-c). Porém, a verdade é a grande amada dos filósofos, mas não dos poetas! Os poetas amam sobretudo a vida, querem celebrá-la. Por isso os poetas cantam as aparências, louvam-nas, e não desejam separar-se delas através do esforço ascético do pensamento.
Apesar da sua origem comum —o êxtase admirativo —, os caminhos do filósofo e do poeta separam-se, permanecendo o poeta ligado às coisas, às realidades que se lhe apresentam, desfrutando da contemplação das mesmas, enquanto o filósofo prefere renunciar a tudo isso, o que supõe um esforço violento. O filósofo, ao dar primazia ao pensamento, sacrifica a contemplação da pluralidade das coisas a que se tem acesso, (mas que continuamente se perdem num devir de nascimento e morte, numa contínua substituição), em busca de unidade e de permanência. Esta renúncia assenta num ascetismo que transforma o espanto primordial em interrogação incessante. O problema, justamente, reside em que a inquisição do intelecto implica o martírio da vida.
Logo após o nascimento do mestre —que surge com o poema O Guardador de Rebanhos,escrito de uma assentada —escreve imediatamente, também de seguida, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua. Na carta acima citada esclarece: “foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.” E mais adiante especifica: “pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. Quanto a Bernardo Soares, precisa: “É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade”.
Talvez o Pessoa poeta não conseguisse renunciar ao Pessoa pensador e vice-versa. Para dar conta destas perspectivas irreconciliáveis foi-lhe necessário criar tantas vidas quantas as possibilidades de se posicionar perante esta questão. Na sua genialidade Pessoa oferece-nos um caleidoscópio de modos de ser.
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico