Não é cometimento simples, fazer a crónica de um processo diplomático que se prolongou por mais de uma década, onde o regime do Estado Novo pretendia justificar a defesa do seu império. Como é do senso comum, a defesa das colónias e a defesa do regime eram irmãos gémeos siameses, e não é preciso comprovar com o que se passou depois do 25 de Abril. As provas de obstáculos que se põem ao historiador passam pela essência dos eventos das três frentes, e o historiador da diplomacia não pode remeter para outros a veracidade dos factos que ele utiliza, precisa de os relevar para mostrar cronologicamente os porquês da evolução da política externa em função da resposta das Forças Armadas portuguesas aos movimentos independentistas. Reconheça-se que Bernardo Futscher Pereira trabalhou meticulosamente nos arquivos diplomáticos, dá-nos um impressivo contexto internacional e destaca o que de mais importante interferiu nessa guerra. É o principal mérito que se pode atribuir a Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira, Publicações Dom Quixote, 2022, temos aqui obra de referência.
Obra referência pela sua boa organização, veja-se aquele ano de 1962 onde houve contestação à política ultramarina dentro do regime, como se contrariou a guerrilha em Angola, o significado do confronto entre Venâncio Deslandes e Adriano Moreira, o impacto do Catanga e do Congo na condução da contrassubversão, o relacionamento dificílimo com Washington, o discreto afastamento de amigos de longa data, como o Brasil; o começo da luta armada na Guiné, o continente africano maioritariamente a favor das independências, o nosso isolamento diplomático em África, as sucessivas tentativas de encontrar apoios junto da África Austral e dos regimes conduzidos pelas minorias brancas, o início das hostilidades em Moçambique, os inesperados acontecimentos como o assassinato de Delgado, a Santa Sé a ter o discurso favorável aos independentistas, a abertura da frente Leste em Angola, o projeto das barragens do Cunene e Cabora Bassa, a substituição de Salazar por Marcello Caetano. E as ambiguidades e os equívocos em que o Marcelismo foi pródigo, as vedetas militares nas três frentes (Spínola, Costa Gomes e Kaúlza de Arriaga), o Exercício Alcora, no fundo a aliança com a África do Sul e a Rodésia para receber apoio militar, a melhoria aparente das relações com o EUA e a precipitação de desastres e de sucessos, o maior isolamento diplomático provocado pelo ataque a Conacri, a estratégia montada por Costa Gomes no Leste de Angola, os massacres de Mucumbura, a comprovada desmoralização das tropas. E entramos no período crucial de 1972 a 1974, agravam-se as relações com os padres missionários, dá-se o massacre de Wiriamu, o assassinato de Amílcar Cabral, o tsunami militar da Guiné, recrudesce a guerrilha em Moçambique, o PAIGC proclama a independência, constitui-se o Movimento dos Capitães, dão-se os massacres de Inhaminga e a revolta na Beira, entra-se num período de desvario, Marcello Caetano impulsiona contactos com os movimentos de libertação, é demasiado tarde. Como escreve o autor na apresentação da sua obra, “História de resistência, a história deste período é, também, uma história de oportunidades perdidas. A capacidade de sobrevivência evidenciada pelo regime sobreviveu a comunidade internacional e os próprios países africanos. Em 1963, 1968/69 e até em 1972 houve condições objetivas propícias para tentar uma saída negociada para o conflito, que o regime não quis ou não soube aproveitar. Pela sua obstinação, pagámos todos um preço elevado: os milhares de vidas perdidas na guerra, os traumatismos que causou, os recursos nela desperdiçados, as sequelas de ressentimento que deixou e o atraso que provocou na transição para a democracia em Portugal e na inevitável transformação das ex-colónias em África em novos estados independentes.”
O que se permite aqui deplorar é por vezes o atabalhoamento com que se abordam factos, pessoas, operações militares. É preciso desconhecer totalmente a biografia de Amílcar Cabral e dizer que ele é filho de uma família culta e abastada de funcionários, padres e comerciantes cabo-verdianos; segue-se o mantra sucessivamente repetido por autores que não consultam os arquivos e que falam dos quatro anos da governação de Arnaldo Schulz como uma calamidade militar, dizendo que se manteve à defensiva, bombardeando santuários do PAIGC a torto e a direito, que não teve política de informações, bastava consultar toda a documentação produzida pelo Estado-maior do Exército sobre as campanhas da Guiné para perceber como se combateu denodadamente, mas sempre com armamento antigo e um orçamento à rédea curta, nada que se comparasse aos efetivos e ao orçamento extraordinário com que Marcello Caetano contemplou a Guiné… até se ter chegado à “exaustão de meios”, com que dramaticamente o governador Bethencourt Rodrigues se dirigiu ao governo em 20 de abril de 1974; o relacionamento entre Marcello Caetano e Spínola está manifestamente mal tratado; verdade seja dita que o autor pôs cobro, com meridiana clareza, à fábula da ligação de Spínola e da PIDE ao assassinato de Amílcar Cabral, há países que vivem a esconder tragédias, a Guiné-Bissau e os arquivos portugueses não possuem qualquer prova de ligação do assassinato de Cabral e a interferência portuguesa.
E falar de questões militares nos tempos que correm exige uma bibliografia atualizada, mostrar, por exemplo, que se procurava desesperadamente equipamentos para a Guiné com dinheiros emprestados pela África do Sul, sob o manto do Exercício Alcora. Oxalá o embaixador Bernardo Futscher Pereira disponha de vontade para que em nova edição todo este acervo diplomático que ele trata com o maior escrúpulo seja acompanhado de uma revisão profunda dos acontecimentos militares. Insista-se que há um livro que merece a melhor atenção dos estudiosos e de todos aqueles que pretendam uma boa síntese sobre a política externa portuguesa naqueles tempos tão conturbados, entre 1962 e 1974.