O Reino, de Emmanuel Carrère, publicado pelas Edições Tinta-da-china, «conta a história dos primórdios do cristianismo e de como dois homens, Paulo de Tarso e Lucas, transformaram uma pequena seita de judeus, liderados pelo seu pregador crucificado», na religião que em três séculos levou à queda do Império Romano e conquistou o mundo.
É um livro portentoso, com mais de 400 páginas de letra miudinha, em que nas primeiras 100 páginas o autor nos faz um relato de como 25 anos antes passou por uma profunda crise existencial, tornando-se um cristão fervoroso, um católico praticante, com quem 3 anos depois deixou de se identificar. Assumindo-se agora como um céptico, agnóstico, «nem suficientemente religioso para ser ateu» (p. 103), o autor revisita o seu arquivo, como é o caso de 18 cadernos em que comentava diariamente passagens do Evangelho de S. João.
Na terceira parte do livro, o autor mergulha então no relato das vidas do apóstolo e do evangelista, sempre baseado na leitura da Bíblia, das cartas de S. Paulo, e vários outros textos religiosos. Porque ao autor interessa esmiuçar a verdade, tentando compreender o que está por trás de testemunhos nem sempre claros e de passagens insuficientes, O Reinoé uma narrativa extremamente pessoal (o autor despe realmente a alma), e uma reconstrução histórica do Cristianismo nos seus primórdios, tacteando cuidadosamente entre o «certo, provável, possível e não impossível» (p. 331), demonstrando-nos como a religião não nasceu com a vinda do Messias – na verdade, quase nem deram por ele na altura –, mas com discípulos de carne e osso: Paulo de Tarso é um caso paradigmático, pois não chegou a conhecer o Cristo em vida.
A perspectiva crítica de um conhecedor não crente do Evangelho – «passei dois anos da minha vida a comentar João, dois a traduzir Marcos, sete a escrever este livro sobre Lucas» (p. 413) –, dá-lhe espaço para colocar em causa aspectos de uma religião baseada numa inversão radical de valores (os ricos serão os pobres, os últimos serão os primeiros), cujos princípios se parecem ter perdido com o tempo: «A Igreja já não domina os assuntos; cumpriu obviamente o seu tempo e é difícil dizer se a sua idade avançada, da qual somos testemunhas bastante indiferentes, tende sobretudo para a senilidade agressiva ou para a sabedoria luminosa que lhe desejamos, pelo menos eu desejo, quando pensamos na nossa própria velhice.» (p. 419)
Esse distanciamento crítico permite ainda ao autor ironizar e gracejar, em alguns momentos – são particularmente recorrentes as comparações entre os primórdios do cristianismo e o socialismo comunista, comparando as brigas de Paulo e Tiago com as de Trotsky e Estaline. Estas ligeiras notas de humor ao longo do texto não descredibilizam de todo a seriedade do tema ou a profundidade da análise.
Emmanuel Carrère nasceu em Paris, em 1957. É um dos maiores escritores europeus da actualidade, e realizador de cinema. O Reinofoi vencedor do Prémio Le Monde2014 e Melhor Livro do Ano na Lire.