Não há noticiário em Portugal que não refira urgências hospitalares, demissões de administradores hospitalares, listas de espera, faltas de médico de família, até parece que depois da pandemia (onde os resultados do funcionamento do sistema de saúde são de reconhecimento nacional e internacional) entrámos em convulsão na área hospitalar, e não só. Ainda por cima, com a agressão à Ucrânia, há falta de medicamentos e a subida de preços à espreita. Pareceu-me, pois, que era o momento azado para se lançar um olhar sobre o que na política de saúde foi um detonador de bem-estar associado às melhores condições de vida. Para fugir àquela linguagem sincopada que parece encher o ouvido, mas quase nada retém para o cabal entendimento das coisas, entendi ir por etapas, uma longa duração com antecedentes e o enfoque no presente. Socorri-me de quem tem provas dadas nestas análises, António Correia de Campos, seguiremos depois pela pandemia, ouviremos vozes que nestes tempos de tumulto apregoam a refundação dos sistemas de saúde. A obra com que se abrem as hostilidades intitula-se Saúde e preconceito, mitos, falácias e enganos, António Correia de Campos, Livros Horizonte, 2015. Logo a explicação dada para o crescimento dos custos em saúde:
“É fácil compreender a razão por que na saúde é tudo cada vez mais caro: envelhecemos, vivemos mais anos mas temos mais doenças e, como ninguém gosta de morrer, estamos dispostos a tudo gastar nos últimos tempos da nossa vida. A tecnologia oferece a cada dia novos produtos, novos equipamentos, dificilmente recusáveis, mesmo que não saibamos se os efeitos anunciados correspondem aos verificados. Do nosso rendimento nacional, quase 10% vai para a saúde. Será muito ou será pouco? É na saúde que estamos dispostos a todos os sacrifícios – ‘vão-se os anéis, fiquem os dedos’. Poderemos deixar crescer infinitamente a espiral dos gastos com saúde? Haverá alguma alternativa em que seja a saúde em grande parte paga pelo Estado? Estaremos dispostos a pagar mais do nosso bolso pela nossa saúde? Se a tal fôssemos obrigados, quem cuidaria dos que não podem pagar?”
Ao longo de sete tópicos, este conceituado investigador questiona que a saúde tem outras componentes para além de médicos, hospitais e medicamentos, desde o saneamento e da nutrição até aos estilos de vida; interpela-nos quanto à lógica em que assenta a política de saúde em que os cuidados primários e a saúde pública gozam de menor popularidade que os hospitais a funcionar em pleno, a toda a hora; também nos ajuda a refletir o porquê da corrida às urgências e se algo não se devia modificar para não estarmos constantemente a entupirmos as urgências; e pergunta-nos frontalmente se deverá ser a saúde uma responsabilidade do indivíduo e um fardo descartável pelo Estado; obviamente que a questão ideológica tem primazia, como correlacionar o sistema público e o setor privado, quais as regras do jogo a estabelecer para que o princípio da saúde para todos não seja uma treta; e dentro deste raciocínio, o autor interpela o futuro do SNS e como agir depois da devastadora crise financeira de 2008. Parecem coisas do passado, mas assentam em cheio nos tempos que vivemos. E faz um relance sobre a saúde no nosso tempo que é de grande recorte literário:
“A saúde é hoje um agregado de serviços públicos e privados onde cada um de nós esteve, ou tem, uma experiência e formula um julgamento, onde os media dispõem de especialistas que sabem mais do que ministros, onde todos os dias há notícias, habitualmente más, onde os conflitos entre Governo e oposições, doentes e pessoal, serviços e profissões, fazem parte do quotidiano. Na refrega da colisão entre doente e sistema, na fronteira entre a dor e a alegria, entre o insólito e a normalidade, tantas vezes entre a vida e a morte, a saúde consome energias e devora profissionais, administradores, políticos, jornalistas, recursos e energias. A saúde é o gigante Saturno que devora os seus filhos, como no quadro de Goya. Desgaste profissional rápido, reformas precoces, mortes na estrada de turboprofissionais em pleno emprego, acidentes vasculares, isquémicos e articulares de uma profissão que, não o parecendo, se revela de alto risco. Sem contar com os que pisam o risco da ética, do dever, da lei, atraídos pela facilidade do ganha rápido e pela suposta impunidade de um sistema grande, lasso e tolerante.”
E num exemplo o autor mostra-nos como demos um salto civilizacional: “Há 55 anos morriam 60 crianças no primeiro ano de vida, por cada 1000 que nasciam. Quando ocorreu o 25 de Abril ainda morriam 30, mas hoje falecem 3 ou menos.”
Chegou o momento de enaltecer a saúde pública: “A saúde pública preveniu centenas de milhares de mortes, ou até milhões, mas de desconhecidos. Ninguém pode afirmar ter sido salvo pelo Dr. John Snow, que identificou a água contaminada do Tamisa como a causa da cólera que matava os cidadãos da Rua Principal de Londres, nos meados do século XIX; ou pelo Prof. Ricardo Jorge, que os munícipes do Porto expulsaram para Lisboa por se ter atrevido a confirmar uma epidemia de peste na cidade, no final do século XIX; ou ainda pelo Prof. Gonçalves Ferreira, que, na segunda metade do século XIX, organizou o sistema de saúde de modo a que todos, ricos e pobres, tivessem direito a frequentar os serviços públicos. Na verdade, homens como estes salvaram milhares de vidas, só que anónimas, gerando um reconhecimento quase sempre tardio. Isto enquanto os seus pares da clínica, batalhando contra a morte à cabeceira do doente ou manipulando o bisturi no bloco operatório, tinham habitualmente direito legítimo a elogios nos jornais, ao reconhecimento das famílias ou à homenagem pública quase imediata. Uns e outros cumpriam o seu dever e as suas obrigações, só diferiam nos beneficiários.”
Dá-nos conta das novas ciências e disciplinas associadas à saúde, desde a epidemiologia às ciências associadas à administração da saúde, são décadas de fertilização cruzada entre disciplinas, clínica médica e enfermagem, meios de diagnóstico e terapêutica, gestão dos sistemas de saúde. E observa que os ganhos em saúde devem muitíssimo ao que melhorou na nossa alimentação, ao que melhorou nas condições ambientais e aos ganhos ocorridos em vacinação e terapêutica, isto para termos uma melhor compreensão sobre os fatores determinantes da saúde, que vão desde circunstâncias materiais (educação, habitação, trabalho, cultura e lazer, promoção do estatuo da mulher…) à importâncias destes fatores nos hábitos e comportamentos (os tão propalados estilos de vida saudáveis). Dado a reter: Portugal permanece o país mais desigual da Europa a 27, o que se reflete nas desigualdades de resultados em saúde.
E frontalmente interpela-nos: são os cuidados primários, a saúde pública e os cuidados continuados mais ou menos importantes do que os hospitais, levando a interpelação se pode haver boa saúde sem hospitais e se estes devem, quase por direito próprio, concentrar os recursos votados à saúde. E desenvolve a explicação de como os hospitais ocuparam as preocupações centrais dos políticos do setor desde o final da Segunda Guerra Mundial até finais da década de 1970, e abonam-se explicações: os sistemas universais de seguro-doença, os SNS, as mudanças operadas, a nível mundial nos cuidados de saúde primários, no conceito de promoção para a saúde, atribuindo-se alta prioridade à prevenção da doença e à promoção da saúde, o que levou ao aparecimento dos centros de saúde. E aqui nos detemos, o enfoque que se segue vai para os hospitais e o seu funcionamento.
(continua)