O meu leitor sabe o que é um cínico. Isso: uma pessoa sem pudor, desavergonhada. E sabe qual o significado etimológico da palavra cínico? Isto: cínico deriva da palavra grega kynikós, cujo significado é “do cão, relativo ao cão ou que se assemelha a um cão”. Por isso, pode também considerar-se cínica uma pessoa que leva “vida de cão”, obscena, impudica. É o caso dos filósofos cínicos.
Os gregos antigos chamavam cínicos a um grupo de filósofos… cínicos. Os cínicos desprezavam as conveniências/convenções sociais. O mais conhecido é Diógenes (o cínico, nascido a 413 a.C.: há outro Diógenes). Era um provocador extremado: dormia num tonel usado frequentemente para abrigo dos cães, defecava e mijava e masturbava-se na praça pública… era, digamos, um cão de rua.
Diógenes assumia e valorizava essa vida de cão. Mas considerava que havia outra vida de cão-cão.
Um dia, andava a comer pela praça, quando alguns gregos se acercaram dele, gritando-lhe “cãããão!”, em altos gritos e repetidamente. Imperturbável, ele perguntou-lhes: “afinal quem é mais cão? Eu, que estou aqui a comer descansadamente, ou vocês, que estão p’raí a girar à minha volta enquanto eu como?”.
O alvo da crítica cínica eram os valores socialmente dominantes, os valores que reprimem a natureza íntima do Homem.
Num banquete, atiraram uns ossos a Diógenes, como se ele fosse um cão. O filósofo foi a eles, aos ossos, não para os comer mas para lhes urinar, levantando a perna como se fosse… um cão.
Como disse, masturbava-se em público. E justificava-se assim:
se temos fome, comemos; temos sede, bebemos; por que havemos de nos esconder, quando se trata de desejos sexuais? “Ai! se matar a fome fosse tão fácil como masturbar-nos: se pudéssemos acabar com a fome apenas esfregando a barriga!…”
Diógenes não aguentava bajuladores, não temia nem receava dizer a verdade aos poderosos. Uma das estórias mais conhecidas é esta:
O rei Alexandre, o Grande, visitou-o, atraído pelo seu prestígio; apresentou-se e prometeu-lhe satisfazer um seu desejo, fosse ele qual fosse. Diógenes pediu-lhe apenas: “Só quero que não me faças sombra. Sai da frente do sol!”.
São lendárias as suas tiradas, as suas respostas a algumas perguntas ou a reprovações alheias:
Um oleiro perguntou-lhe, um dia, se deveria casar-se ou ficar solteiro. Resposta do filósofo cínico: “Faças o que fizeres, vais arrepender-te”.
E, quando alguém lhe atirou em cara o ele beber na taberna, respondeu: “Onde é que está o mal? Estranho seria ir beber na barbearia e cortar o cabelo na taberna”.
Como já escrevi acima, a excentricidade de Diógenes não é gratuita. As frases e as gracinhas acutilantes que lhe são atribuídas (digo atribuídas, porque Diógenes não escreveu nada – o que está de acordo com o seu perfil) – essas gracinhas, digo, são crítica social ou proposta de outro modo de viver. Por exemplo, que a caridade é movida por uma espécie de egoísmo e até pelo medo:
Impressionado com a pobreza de Diógenes, alguém lhe perguntou por que razão as pessoas dão dinheiro aos mendigos e não aos filósofos; justificação dele: “porque temem que, um dia, possam tornar-se inválidos ou cegos, mas nunca filósofos”.
Segundo a teoria de Platão (o conhecido filósofo grego nascido no século V a.C.), as coisas que captamos pelos sentidos são cópias, imitações que participam de algum modo do mundo das Ideias, mas que não devem confundir-se nunca com estas Ideias. Assim, um corpo belo participa da Ideia de Beleza, mas não é a Ideia de beleza. Para parodiar esta teoria…
…um dia, Diógenes pôs-se a comer figos secos na frente de Platão e disse-lhe: “Platão, podes participar deles”. Platão não se fez rogado e começou a comer dos figos. Diógenes mandou-o parar: “Platão, eu disse-te que podias participar deles, não que os comesses”.
A acreditarmos no que deles se conta, estes dois filósofos não iam à bola um com o outro. Umas vezes é Diógenes que goza com Platão; em outras, os papéis invertem-se.
O cínico provocador, em dia de chuva intensa e aproveitando o chão estar bem enlameado, entrou na casa do outro e pisou-lhe os tapetes, dizendo: “É assim que piso o orgulho de Platão”. Ao que o outro retorquiu: “Pois pisas!… Pisas o meu orgulho com o teu”.
Há quem diga que o grego Antístenes (nascido por volta de 345 a.C.) foi o fundador da escola cínica. As relações entre ele e Diógenes também não terão sido (sempre) de respeitinho.
Em final de vida, doente e cheio de dores, Antístenes lamentava-se na frente de Diógenes: “Aaaaai! Quem me tirará de tanto sofrimento?”. Diógenes mostrou-lhe um punhal: “Este, mestre, tirar-te-á desse sofrimento todo”. E o mestre corrigiu: “És mesmo estúpido! Eu disse do sofrimento, não da vida”.
[Este texto está também publicado em http://omeubau.net/diogenes-cinico]