Em 2015, António Correia de Campos publicou Saúde & Preconceitos, Mitos, falácias e enganos, Livros Horizonte, fez uma seleção de vários tópicos, lançou imensas perguntas, falou da história da saúde pública e do SNS. Não lhe falta autoridade nem qualificação para o domínio do que escreve, e recorda a quem anda esquecido que a saúde não é apenas uma legião de médicos, enfermeiros e técnicos especialistas agregados a hospitais e centros de saúde, não é só um domínio de medicamentos e de listas de espera, todos nós contamos, é esta a consigna da saúde no futuro.
Só espero que o autor possa vir a atualizar a evolução das políticas de saúde nos últimos 7 anos, correu muita água debaixo das pontes e a pandemia da covid foi um ponto de viragem. Em textos anteriores procurou-se dar ênfase a questões que continuam prementes ou que são influentes para todo aquele que tem a saúde como referencial, desde os profissionais, aos doentes e aos cuidadores, abordou-se o funcionamento hospitalar e a inevitável reorganização dos sistemas de saúde que exigem novas orgânicas para os centros de saúde e as unidades de saúde familiares, o hospital não é um fim em si mesmo. E aqui põe-se uma questão que obriga a uma resposta prudente e sensata, trata-se dos gastos em saúde, como é que é possível a sua otimização sem decréscimos orçamentais.
Estes gastos, no chamado mundo ocidental, têm vindo a crescer, houve desacelerações, foi o caso das crises do petróleo em 1973 e 1980. Durante o período áureo do Pós-Guerra, tudo parecia correr bem: aumentaram o investimento, o emprego, os salários, a formação profissional, a ciência e tecnologia, os encargos com a segurança social, e tudo mais. Mas em saúde há especificidades, como o autor observa: “O mercado não pode ser usado como processo de racionalização e muito menos de racionamento. A racionalização dificilmente funciona, pela variedade de atores e de modelos de comportamento e o racionamento quase sempre destrói a equidade.
É necessário recorrer a instrumentos mais finos: mecanismos de controlo ou de regulação acoplados a incentivos e penalidades que se dirigem mais ao decisor, quase sempre o médico que gere a saúde do utente ou a instituição prestadora de cuidados, moldando-lhe o comportamento e menos ao cidadão consumidor direto, normalmente apoiado por um terceiro pagador.” E dá-se explicação para as razões do aumento de gastos: ligadas à procura, como as de ordem demográfica, maior cobertura da população, aumento do rendimento das famílias, particularidades do sistema de financiamento dos prestadores e instituições prestadoras, razões ligadas ao padrão de saúde e doença, em especial à morbilidade, que acumula doença crónica em doentes de evolução prolongada, exigindo cuidados regulares por vezes permanentes, incluindo os de natureza institucional.
Os números destes gastos merecem reflexão, o autor lembra o que se passou entre nós na década de 1970: “Os encargos com pessoal, na totalidade dos gastos públicos em saúde, subiram de 52 para 78%, sobretudo à custa da maior exigência de especialização do pessoal hospitalar, onde a evolução foi de 40 para 71%.
O impacto da tecnologia médica foi enorme, nessa década e na seguinte, quando surgiram grandes e modernos equipamentos de imagem como a TAC, a ressonância magnética nuclear (RMN), a câmara de raios gama, a tomografia por emissão de positrões (PET) ou de tratamento como a litotrícia ou a diálise renal em ambulatório, ou ainda a cardiologia de intervenção. A tecnologia foi um fator de acréscimo de gastos, com discutível reconhecimento da eficácia dos meios usados.”
O autor releva também a importância que tem sido dada ao reforço dos cuidados de saúde primários, põe em equação o sim ou não das taxas moderadoras e lança a reflexão sobre a sustentabilidade financeira, recordando os atributos dos sistemas de saúde: a efetividade, a resolutividade, a eficiência, o custo de oportunidade, a equidade e a qualidade, estes atributos entrelaçam-se e exigem rigor e indispensável maleabilidade. E houve a contenção forçada pela Troika, o gasto do SNS no PIB desceu. “As contas testemunham o efeito de uma austeridade nunca antes tentada: não foram apenas os vencimentos e horas extraordinárias que sofreram pesadas amputações, embora os primeiros cortes em vencimentos tenham ocorrido ainda no governo anterior.
Os principais efeitos dos cortes verificaram-se na despesa com o transporte de doentes, nos meios de diagnóstico e tratamento adquiridos ao setor privado, com reduções administrativas forçadas nas tabelas de preços e sobretudo na visível poupança de gastos em medicamentos. Estes atingiram uma redução nunca vista, pela combinação de vários fatores: o fim das patentes de muitos medicamentos de toma regular e o imediato aparecimento de genéricos de boa qualidade e com muito mais baixo preço, as reduções forçadas de preços em novos medicamentos; negociações globais com a indústria, criando tetos de despesa e de devolução obrigatória dos excedentes financeiros.” E dá-nos uma conclusão: “Não é possível culpar a saúde, em especial o SNS, de não ter colaborado no ajustamento financeiro imposto pela Troika.
O Ministério da Saúde gastou menos recursos públicos e requereu às famílias uma maior participação nos encargos.” E vaticina: “Sucessivas reformas do setor, entre nós e lá fora, demonstraram que é possível e desejável introduzir ganhos de eficiência na forma como se organizam os serviços de saúde. A equidade elevada que hoje registamos nos nossos sistemas pode ser afinada, aprimorada, dirigindo a despesa especialmente para áreas onde ela tenha mais efeitos e sirva mais os cidadãos. Sem rigor na despesa não existe acréscimo de qualidade nos sistemas de saúde.” E traça um juízo final: “A saúde tornou-se mais cara para as famílias, certamente bastante mais inequitativa, vendo reduzir a sua qualidade, com reflexos na efetividade, caso da crise das urgências.
Se, com o pretexto de se aumentar a responsabilidade dos indivíduos pelo financiamento das prestações de saúde, tanto no público como no privado, continuarmos a reduzir a dotações orçamentais para o SNS, estaremos a liquidar este sistema que tão bem tem servido Portugal nos últimos 40 anos, pela destruição lenta dos atributos em que ele assenta: a universalidade, a equidade, a eficiência e a qualidade.”
Deixaremos para outra oportunidade a análise que o autor faz sobre o público e o privado na saúde. Não se pode escamotear a questão ideológica, pois há quem apregoe que a solução para a crise na saúde passe pela privatização da oferta (embora sem explicar a que preço na qualidade de vida e nos impostos a pagar por cada um.
Nem vale a pena insistir que estamos perante um livro de leitura obrigatória.