Não resisto recordar-vos, mesmo sofrendo com a minha própria ironia, que se aproxima, mais uma vez, o dia nacional do eleitor/eleitora.
Se ainda não foi inventado, não terá sido por culpa dele ou dela. A classe política já teria tido tempo, mais que suficiente, para pensar na criação de um dia comemorativo para a sua celebração. Não é razoável que, nela, ainda não tenha despontado essa vontade. A criação de uma data comemorativa, dedicada à figura tão apreciada do dito cujo voto, no meio de ideais, ideias e de aproveitamento político, faria todo o sentido, até mesmo porque, na atualidade que é a nossa, fica extremamente fácil criar designs para datas comemorativas grátis com o Adobe Express.
Mas a sua criação é, sobretudo, imperativa, porque o que os políticos mais temem, na paradoxal condição das lideranças partidárias, são os eleitores em modo de pessoas estacionadas, cristalizadas nos mesmos partidos de sempre, que não dão importância à dúvida, à interrogação e à mudança. Paradoxo dos paradoxos, caso assim fosse, a estabilização do voto transformaria as eleições num ato único, bastando os eleitores irem às urnas apenas uma só vez. Então, parece fazerem sentido todos os atos eleitorais, mesmo os considerados mais “evitáveis”, como o que se desenha no atual cenário. Nesta lógica, têm toda a acuidade as bem-aventuradas mudanças de orientação de voto dos eleitores nos partidos, mesmo os daqueles que resistem em mudar de relógio, de clube de futebol, ou de um qualquer futsal, mais próximo da sua residência.
Depois, só essas possibilidades de mudança parecem ser capazes de justificar um ciclópico esforço de mobilização, para as guerras partidárias, das gentes acomodadas, – dizem – que não são capazes de ir para além do sofá, não se dando ao cuidado de despir o dominical roupão, nem de se interessarem pelos programas prêt-à-porter, quando hoje já há aplicativos com links diretos para tudo e mais alguma coisa. Torna-se incompreensível, aos líderes, que os eleitores possam fazer, dos seus programas eleitorais, uma espécie de documentos apócrifos, como se as escritas dos partidos que encabeçam não contivessem ecos de metafísica inspiração, dando injustificado lugar a um inclemente ceticismo quanto à sua práxis política.
É sabido, pela santidade do confessionário, invenção de São Carlos Borromeu, que, perante uma sucessão de crises políticas, ou fora delas,uma parte significativa desses eleitores não aceita, de bom grado, ter de ir às urnas, por indevida confusão semântica. Não compreendem porque carga de água as caixas onde se recolhe o escrutínio dos partidos, que nos saem em rifa, têm a mesma denominação dos recipientes de recolha das cinzas dos finados. Não falta mesmo quem pense que esta designação fúnebre encerra os restos mortais do poder dos votos que, a contragosto, caiem nas urnas, só apressados pela força da gravidade do seu peso.
Esta resistência parece tanto mais compreensível quanto a da hipótese de que está cada vez mais fora de cogitação dos eleitores acreditarem que o orifício e cavidade a que chamam boca das urnas, seja detentora de substantiva eficácia do ato eleitoral. Os que lá vão, acabam por aceitar, contra vontade, que o poder de voto não é a mesma coisa que o peso do voto. Percebem que, o dito cujo, mal tropeça na escuridão da urna, logo se separa ou divorcia da vontade do seu senhorio eleitor, ora mergulhado na condição de fraco algoritmo.
Fica em falha a posição aristotélica do transporte automático da ideia de que sendo, em maior número, os indivíduos desfavorecidos que votam, se aplica, por obviedade estatística, o acerto de que seriam os pobres a governar o mundo, ou alguém por eles.
É muito óbvio que a falácia de que são as maiorias eleitoralmente formadas que governam o Estado – essa figura superior de moralidade – logo se desmorona numa inconsequente fragilidade para uma boa parte dos eleitores. A ideia de que o povo governado governa por intermédio dos seus representantes fica de difícil admissão porque a simbiose entre governantes e governados, neste modelo de Estado de Direito, que é o nosso, parece ser vivida apenas em momentos de espasmódica apoteose eleitoral.
Na minha modesta opinião, encimada pelo primado de que o humor não tira seriedade, mas tira peso às coisas, diria que fica cada vez mais difícil, aos políticos, fingirem que não percebem o desconforto, o mal-estar que se abate sobre a não participação eleitoral de meio mundo. Parecer-lhes-á ser mais fácil a perpetuação da aceitação de que a democracia pode continuar a ser definida de acordo com fórmulas institucionais já gastas, não dando atenção preventiva à degradação do modelo.
Todavia, é por ser possível identificar, no conjunto dos seus órgãos institucionais e das suas estruturas, formas de superação das atuais limitações do modelo democrático, redutíveis a um voto, que se entende oportuna a reivindicação, junto da classe política, para que se debruce, com urgência, sobre a substância concreta da democracia, evitando o inevitável caminho do seu mais completo estiolamento.
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