Possível perscrutar ainda no Rossio da Trindade, vozes negras de fantasmas agrilhoados nos porões da nossa história. Ou o aceno de despedida do rei menino à janela do castelo. A caminho do deserto e do desastre. De uma viagem que não o trouxe de regresso, pouco menos o cobrindo da glória desejada. Como se nunca tivesse partido, pois que ali ficou talhado na pedra erguida na praça. E no painel de azulejos evocando Alcácer Quibir. Exposto, frágil, ambíguo e vulnerável. Alienígena indefeso, perante os olhares curiosos dos novos viajantes e conquistadores.
Outra sorte ganhara o marinheiro temerário que lhe havia aberto as portas do mar perigoso.
Por aquelas praias cruzaram-se, num longínquo outrora, povos com história. Por ali passaram gregos e fenícios; e Roma contra Cartago. Primeiro chamaram-lhe Lacobriga. Depois vieram os árabes que lhe deram o nome de Zawaia, mas foi com os portugueses que conheceu o apogeu e a fortuna.
No século XV – o seu século de ouro – e durante cerca de quarenta anos, torna-se o centro de tudo. Foi base operacional dos descobrimentos henriquinos e fervilhava então de comércio: produtos exóticos, ouro, prata e marfim. E escravos também.
Em 1573, D. Sebastião – a medir os apoios da empresa falhada que estava a organizar – e entusiasmado pela forma como havia sido recebido pela população, eleva-a ao estatuto de cidade. Lagos torna-se sede de bispado e capital do reino do Algarve.
O terramoto de 1755 e o maremoto que se lhe seguiu destroem grande parte da cidade que, só a partir de meados do séc. XIX, com a indústria de conservas de peixe e o comércio, inicia nova fase de recuperação da prosperidade perdida.
E hoje, Lagos continua uma cidade do mundo e dos mares. Bela, sedutora, amiga, atraente e apetecível. As suas praias onde antes mergulhavam sonhos e futuros, são hoje destino de férias e de lazer para viajantes vindos de toda a parte.
Com este céu e a transparente claridade que enche os sentidos azuis de tanto mar, impossível resistir à companhia deste sol e à benção desta luz. Rua abaixo, no caminho da manhã, seguindo os passos de Sofia:
“Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível”.
Fontes: “Livro Sexto”, Sophia de Mello Breyner Andersen*, outras