O nosso intenso e insaciável apetite pelo mundo encontra hoje tradução em tentativas de estagnação do tempo, no ideal de corpo perfeito que imaginamos, subtraindo-o a uma fatalidade da natureza.
Com a supressão da alma, ficando apenas entregues aos cuidados com o corpo, sobreveio-nos uma aparência culpada, vertida nos embates com as rugas que nos amedrontam e fazem sofrer, chegando mesmo a envergonhar-nos o modo como as disfarçamos, na prodigalidade dos festivais de arte cosmética.
É estranho que continuemos a dotar de centralidade o desejo de possuir corpos plásticos, depilados, fetichizados, numa espécie de fuga ao Neandertal peludo, com sapatinhos de veludo
No fervor do corpo remodelado, jovem, esbelto, longilíneo, há todo um jogo de dominações bem característico do nosso tempo, que o retocam no vazio das ideias, procurando fazer dele uma obra de arte sui generis. De forma aprazível, a arte do corpo produzido, feito embalagem, ilude quanto à estagnação do tempo em nós.
Nos prosaicos anos de juventude, das viagens psicadélicas e do fervor político de esquerda, tocava-nos dormir aqui e ali, abandonando o corpo a um qualquer manancial de prazer: um charro, ou um banalizado amor livre como moeda de troca corrente. Não vivíamos a estigmatização do excesso de peso, nem o fascínio do idealizado corpo magro, para que tivéssemos que malhar nele, submetendo-o a dietas, treinos intensivos ou cirurgias plásticas.
É estranho que, hoje, no tempo da política engravatada, do regresso a sanguinárias guerras de enfeites tecnológicos, á violência insana, ao aprofundamento das desigualdades sociais, á intolerância, aos nacionalismos bafientos, ás baforadas de racismo, continuemos a ter como foco, como ideário das nossas vidas, o irrelevante e compulsivo enredo do corpo como obra de arte, forçado a um teimoso recuo nas rugosidades. É estranho que continuemos a dotar de centralidade o desejo de possuir corpos plásticos, depilados, fetichizados, numa espécie de fuga ao Neandertal peludo, com sapatinhos de veludo.
É espantosa a profusão do investimento em corpos esculturais, de músculos luminosos e ancas bem esculpidas, produzidos em ginásios que prometem fazer do passado o nosso futuro.
É esquisito que façamos depender o culto do corpo da prodigalidade submissa a um batalhão de educadores físicos, cirurgiões plásticos, psiquiatras, dermatologistas, nutricionistas, com ou sem pós-graduações, no imenso atoleiro de uma frustrada felicidade encimada pela aparência da perfeição estética.
É insólito que vivamos compulsivamente presos aos corpos de que nos queremos libertar. É duvidoso que a beleza autêntica possa ficar a dever-se a uma escrava submissão aos: rejuvenescimento facial; toxina botulínica; preenchimentos; projeções de queixo e mandíbula; bichectomia; lifting de braço, coxa e púbis; cirurgia íntima; laser de CO2; lipoaspirações; inclusões de próteses de silicone; gluteoplastia; tratamento de gordura localizada; entre inúmeros outros.
E não será irrelevante apagar a anónima morte dos corpos escravos de si mesmos, no espelho de um batido requiescat in pace, deixando, para a História, coisas vazias, redutos de pedaços de madeira carunchosa a quem o bicho pegou apenas a horas mais tardias?
Ah! Mas temos, finalmente a possibilidade de eternização da nossa imagem no Meta Físico Facebook, pois então.
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