Faz falta um certo grau de preparação, rigor e evolução pessoal, é certo, pois o mais fácil é ceder à tentação de nos sentarmos no primeiro restaurante minimamente airoso de onde se desprendam apetitosos odores. Mas há regras que, a serem seguidas, nos podem proporcionar experiências mais que gastronómicas: sensitivas ao ponto de nos transportarem para outras dimensões. É imperativo, por exemplo, evitar restaurantes sem brio na decoração ou dedicados a caçar manadas de incautos turistas, ou ainda aqueles cujo “nome” advém da boa localização. Eu dedico-me a caçar jóias mais raras, escondidas, carregadas de uma energia que, por maior que seja a cidade, acabam por me atrair. Mas lá está, não posso permitir-me sucumbir ao apetite nem a pernas já cansadas de tanto saçaricar.
É por isso que nunca acho estranho quando alguma rua me suga ou quando, por um qualquer ímpeto inexplicável, entro em locais desconhecidos com a certeza absoluta da urgência de lá entrar. Aconteceu hoje de novo. Jantámos no restaurante La Cueva, na carrer dels Apuntadors (delicioso e muito típico, devo acrescentar) e decidi deixar o café para outro local.
Ainda a digestão não havia começado e passeávamos errantes como cúmplice quadrilha, quando aquela rua me sugou sem que resistir me fosse possível. Então a pesada porta de madeira abriu-se para, logo depois de os fazer entrar comigo, se fechar nas nossas costas.
Levei tempo a digerir o Abaco. Já de lá saí há horas e temo ainda não o ter feito. Este local era tão profuso e intenso que, creio, precisarei de escrever até ao fim esta crónica para o terminar de entender…
Cheirava à fruta que brotava generosamente por todos os cantos: cântaros derramando suculentas pêras, vasos com árvores onde, no lugar de terra, dezenas de laranjas pousavam. Cestas de cocos; tecidos a desprender-se de estátuas de mármore a servir de leito a maçãs, limões e, caramba, tantas e tantas laranjas. Mas havia também o cheiro das flores; margaridas, orquídeas, lilases e muitas outras cujos nomes nem me ocorrem, enchiam incontáveis jarras em arranjos colossais, enormes, impressionantes!
À esquerda, a monumental lareira ostentava todo este fausto e à direita, o bar de onde os eruditos cocktails saíam, era luminoso e alegre.
Avancei para o pátio repleto de árvores de várias espécies e portes. Os canários chilreavam como uma banda contratada apesar de ser noite cerrada. Ao centro um lago e um repuxo muralhados por majestosas velas refrescavam levemente a noite. Sentamo-nos nos cadeirões de palha em redor de uma das mesas de ferro forjado e mármore.
– Tu estás bem? – quis saber o Capitão.
A verdade é que o coração me pulava e o ar quase faltava. Que emoção: estava numa realidade paralela de um contraditório iluminismo burlesco.
– Deixa-me ver se te explico o que estou a sentir: cada um destes detalhes; esta mesa, esta lâmpada sobre ela, a imagem daquela santa, as enormes velas junto ao repuxo… Cada detalhe rococó que aqui vês é, como bem sabes, objecto do meu desapreço… contudo o conjunto de tudo isto está a deslumbrar-me para lá do normal.
Riu-se do meu paradoxal parecer.
Os miúdos entenderam o meu estado e permaneceram discretos enquanto me dediquei a fotografar mentalmente cada detalhe e sensação. As paredes mostarda, o som das valsas, o burburinho tranquilo de todos os que, como eu, estavam a ser transportados para uma outra dimensão fora deste tempo e espaço.
“Não importa onde estamos: encontraremos sempre o sítio perfeito!” disse a mim mesma enquanto o café chegava à mesa. E não tenho dúvidas disto, mas claro: há que resistir aos chamamentos do óbvio e saber seguir os instintos!