“Aqui estamos em frente da Torre, meus senhores, peço que se descubram e ao mesmo tempo um minuto de silêncio pela alminha dos Senhores que lá estão.
Esta Torre já não se sabe de quantos séculos podemos datá-la, mas é certo é que Dom Raymundo Barbela – crê-se que tenha sido o primeiro da família da Torre – saiu destas bandas para ajudar com os seus homens as cargas de Dom Afonso Henriques, seu primeiro do coleteral. As pedras são todas da prumitiba, mesmo lá perto da torreta podemos ainda ler as inscrições latinas que rezam a sepultura de Dom Martim, morto de adigestão quando de uma lampreiada para festejas as vitórias do primo. Tem a Torre trinta e dois metros de altura, é a máor da península e os degraus contam-se em oitenta e nove, com patamares de descanso. A vista lá de cima é grandiosa”.
Sim, nem antes nem depois desta aventura literária de Rúben A. se foi tão longe a falar de um Portugal feérico, mitológico, façanhudo. Há um guia que apresenta aos visitantes as memórias de um Portugal inventado, e momentos há em que se pode supor que estamos perante romance do fantástico, com incursões pelo sobrenatural, mas recomenda-se leitura cuidada, porque este romance escrito em plena década de 1960 é uma xácara habilidosa para caricaturar o nacionalismo bacoco, Rúben A. tratou com pinças esta visita ao alto daquela Torre, “outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, ceiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem.”
Em plena pandemia, a Coleção Miniatura de Livros do Brasil fez reaparecer uma das obras-primas da literatura portuguesa e lusófona, A Torre de Barbela, em boa hora o fez, tem preço acessível, é obra para ficar nas nossas estantes, leitura a retomar quando se impõe repensar o Portugal do Quinto Império, das bravuras mil, das extraordinárias peregrinações, nação mirífica e imortal. Porque os que vivem na Torre levam às centenas de anos uma boa convivência, tudo na margem esquerda do rio Lima, a Ribeira Lima, após o horário da visita com aquele guia estrondoso, os antigos Barbelas, vindo de oito séculos diferentes, ressuscitam e habitam os seus arredores, é uma azáfama de amores e ardores, coscuvilhices e êxtases, naquele espaço minhoto, onde se vai falar da Moutosa, a Vila de Serzedelo, Viana do Castelo, a Serra de Arga, o Jardim dos Buxos, e do que pelo adiante se dirá, esses Barbelas, têm muito para contar:
“Quando a linha do horizonte baixava em intensidade e os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas, naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações, os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da Torre. De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades, os dramas pessoais e a contagem de fábulas capazes de entrarem pelas ruelas aveludadas dos vizinhos de Serzedelo e de Vitorino das Donas. Aquele ressuscitar transfigurava a Torre. A procissão saía a pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios – trazidos por Dom Payo da Barbela quando das suas incursões por terras do Prestes João – e também da vala comum surgiam ainda os apátridas, filhos ilegítimos, frades, freiras, e os que remotamente pertenciam à venerável espérmia da Torre.” Entraram em cena o Menino Sancho, Dona Urraca, o Cavaleiro e o seu garrano Vilancete, Dona Mafalda Madeleine de Barbelat (esta terá papel crucial num desfecho trágico que nem vos conto), percorre-se toda a História de Portugal e a sua épica, e chega o momento de apresentar a grandeza do lugar:
“O Solar da Barbela data precisamente do século XVI, quando os Barbelas em protesto contra os anos de cativeiro espanhol resolveram abandonar a capital do Reino e regressar às terras. Nessa época, os Barbelas voltaram à vida rural e nada mais encontraram da propriedade do que a Torre e o terreiro ao lado, com algumas habitações toscas. O oiro das especiarias e o comando das esquadras da Índia tinham levado os braços disponíveis nas redondezas. Quando Dom Sebastião desapareceu na sua fatal correria de Alcácer, além de arrastar muitos Barbelas consigo, deu também um ar desolador à pátria. Os fumos da Índia e as espumas de África trouxeram consigo a desolação, sem que para isso fossem bastantes as façanhas dos fidalgos de Entre Douro e Minho.”
Os Barbelas até tiveram santos, como São Cyro, é o comandante espiritual da Torre. Há paixões escondidas, dignas de Tristão e Isolda, como o Cavaleiro e Madeleine, há visitas dos Barbelas à Beringela, que têm um fumeiro muito especial, logo as enguias. E ao longo destas centenas de páginas vamos convivendo com os Barbelas, há gente que até lembra o Eça de Queiroz, como o Dr. Mirinho, que ninguém se iluda, a Torre de Rúben A. é o miraculoso país do passado, onde se celebram centenários, onde há bruxas apaixonadas, como aquela que vive em São Semedo, Madeleine é ligação à França, convém não esquecer os caixotes de Paris e a literatura que nos afogueou, antes e depois com a monarquia constitucional.
Espantosa arquitetura da escrita, onde não falta o bobo italiano, passeios de burro, igrejas como não há no outro Portugal. Veja-se só: “A única igreja no Norte de Portugal que se pode comparar vagamente com a da Moutosa é a da Montaria, no caminho de Orbacém para São João de Arga. Mas é melhor não comparar. O curioso distinguirá imediatamente uma qualidade única em São Lourenço. Possui, como só a Torre de Belém, uma proporção de medidas que equilibra o pensamento ao primeiro relance. Olhando-se em frente fica-se à procura do desnível e do imperfeito. O talho de pedra granítica, com os santos padroeiros das principais freguesias da Ribeira Lima empunhando uma escada para subirem mais facilmente ao Céu, transmite uma doçura de penetração que envolve até o menos crente.”
Não esqueça o leitor de acompanhar a trama amorosa do Cavaleiro por Madeleine, tudo isto num lugar soberbo, de nome a Fontinha, que “fora desde tempos idos o ponto de partida dos Barbelas para as viagens de aquém e além-mar. Daquele estreito molho de granito e terra batida, sombreado pelas ramagens quentes de salgueiros e choupos, as bateiras saíam em direção a Viana, donde os barcos de maior calado levavam a família aos mais diversos destinos do mundo.”
Não se fala aqui só do Portugal maravilhoso, há histórias de assombrar, é o caso do Grande Nevoeiro, uma das diabruras mais imprevistas do destino. “De Barcelos ao Lindoso, dos contrafortes do Gerês até às terras raianas do rio Minho, e descendo pela linha das costa, montes e vales ficaram cobertos de um misto de nevoeiro e neve que transformou o sentido do voo das aves e deu aos homens uma atitude meio religiosa meio borguista que perdurou pelos tempos.”
Porventura por sermos descentes dos Barbelas, é imperativo dever nosso conhecer de fio a pavio toda esta saga genialmente redigida por Rúben A. Está aqui o nosso retrato, caso não esteja muito iludido: “Falavam, falavam, conversando fiado por tempos sem conta, discutiam, assentavam decisões e conversas, e ao fim encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado. Enfim, o que havia era, bem ou mal, a prata da casa. Aquela prata que se apresentava nas grandes ocasiões de cerimónia e onde se comia a malga do caldo-verde e o naco de broa acompanhado de uma lasca de bacalhau cru ou de uma rodela de enchido de porco. Um destino embebido de fatalismo, uma espécie de não-te rales. O resto não os preocupava em profundidade.”
Nem vale a pena insistir que estamos perante um livro de leitura obrigatória.