– É lindíssimo o rio a esta hora – diz o Mestre Homem Cardoso, puxando uma fumaça do seu cigarro aquecido e contemplando a noite, que descia lentamente sobre as águas plácidas.
– É o rio Séqua.
– Séqua!? Não é o rio Gilão?
– Gilão ou Séqua é a mesma coisa. São duas maneiras de nomear o mesmo rio.
– Curioso. Lá para o Norte também vi vários rios com dois nomes. É um embaraço histórico e toponímico.
– Aqui não é bem o caso, porque o rio muda de nome ao atravessar a ponte romana. O Séqua termina e o Gilão começa no sítio em que a ponte atravessa o rio. É assim há séculos. É um adquirido cultural.
– Tenho uma vaga ideia disso – reflecte ele, inspirando outra fumaça. – Uma história de amores contrariados, não é?
– Sim. Amores entre uma princesa moura e um cavaleiro cristão, o que à época era crime de lesa-majestade, de modo que quando foram descobertos suicidaram-se: atiraram-se da ponte abaixo cada um para o seu lado. O Gilão para a foz e a linda moura para montante. História bela e triste e provavelmente falsa.
– Aqui no Sul há mais moiras encantadas que no resto do País. É uma questão cultural.
– Bom, isso da questão cultural dava pano para mangas. Quanto às moiras não as confundas com as mouras. Há moiras encantadas por todo o lado e são qualquer coisa entre a fada e a bruxa. Quanto à nossa princezinha moura chamada Séqua, que eu saiba, não sofreu nenhum encantamento e não anda por aí a desinquietar as gentes.
– É curioso como estas lendas marcam a memória das pessoas e se tornam parte da cultura de um Povo – observou o Mestre Homem Cardoso, enquanto se levantava da mesa com a lentidão que advém de um belo repasto.
Percorremos vagarosamente a beira-rio. Ele parava de quando em vez para fotografar. Eu olhava também na direcção apontada pela objectiva da câmara para tentar ver o que ele via, mas nada. Na verdade eu via apenas palavras e ele via imagens. Há uma diferença muito grande entre estas abordagens. Nada que seja intransponível, todavia. Há disso bons exemplos na história. Ocorreu-me agora mesmo o nome de Francisco de Holanda, mas há muitos outros.
Um pouco adiante, na outra margem, a silhueta incongruente da estação rodoviária deve ter sobressaltado o temperamento estético do meu amigo, que a contemplou longamente, até que, apontando o edifício branco, perguntou: – Sabes quem é que fez esta coisa?
Disse-lhe que sim, que tinha sido um certo arquitecto. Um bom arquitecto, aliás. Ele fitou-me, como que para avaliar da correção da minha afirmação, voltou o olhar para a estação, fez duas ou três fotografias, inspecionou o resultado no pequeno visor da câmara e rematou: – Não percebo.
– Isso é arte, António. Gostes ou não gostes, é arte, e é mais cultura do que a historinha da moura.
– Ó Zé, tem paciência! A cultura, pelo menos como eu a concebo, não é um edifício. A cultura é uma enorme realidade onde cabem os costumes, as crenças e as práticas de um Povo.
– Há outras concepções de cultura, que eu aliás partilho.
– Não me venhas agora dizer que a cultura de uma nação não é a sua essência.
– Sim e não, António. Parece-me que tens uma visão romântica da cultura e essa visão esteve muito bem no século XVIII, mas hoje está démodé.
– Zé, isso que disseste cheira-me demais a filosofias e eu gosto de coisas reais, concretas, percebes? A cultura de um povo, do nosso Povo por exemplo, é uma força espiritual partilhada por todos. É uma força que deu forma à nossa linguagem, à religião, à historia, à própria arte.
– Acho que estou a perceber a tua posição, António, e parece-me que os nossos pontos de vista não são irreconciliáveis. É que eu não associo a cultura ao crescimento natural mas ao seu cultivo. Ora nem todos têm o tempo, a capacidade ou a inclinação para aprender o que é preciso para se ter cultura. E entre as pessoas cultivadas também há diferenças. E, finalmente, a herança cultural tem que ser preservada e transmitida entre as gerações e esse não é um atributo de uma comunidade lato sensu, mas o objectivo maior de escolas e universidades.
– Pois para mim, meu querido amigo, a cultura é o fluxo de energia moral que por trancos e barrancos tem mantido intacta a sociedade em que vivemos. Sem ela estou convicto que não seríamos portugueses!
– Ok, está certo. Para evitar este tipo de confusão, é melhor então distinguir a “cultura comum”, da “alta cultura” e determinar que esta é uma forma de mestria que envolve conhecimentos muito para além do que é encontrado na cultura comum.
– Está bem, eu admito essa cultura de elites, mas para mim existe uma outra através da qual o povo exprime a sua identidade social e o seu sentido de pertença.
– Sim, de acordo, mas nota, António, eu não estou de forma alguma a menosprezar a cultura comum e reconheço que esta foi um sinal de coesão interna das diversas formas tradicionais de sociedade e das suas tribos, mas a verdade é que estas estão a desaparecer o que tem como efeito que, após sermos apanhados nas ondas da civilização global, as antigas práticas, rituais e crenças adquiram uma qualidade inconsistente que, aliás, reflecte bem a nossa existência desenraizada. Apesar disso, reconheço que os habitantes das cidades actuais são seres tão sociais quanto os homens das tribos e são incapazes de viver em paz sem uma qualquer identidade social que lhes ofereça a confiança neles próprios.
O Mestre Homem Cardoso remeteu-se ao silêncio e pareceu-me de repente que o tinha aborrecido com a minha verborreia, mas não. Afinal estava apenas absorto na sua arte e sobretudo a lutar com a falta de luz. Fomos andando assim, sincopadamente, ao ritmo das fotografias, até à Ponte Romana onde depois de inúmeras poses se sentou num dos bancos de pedra e declarou:
– Esta luz não serve. Devia ter ido buscar a outra máquina ao carro… Houve cá, Zé, pelo que vejo, nas tuas filosofias borrifam-se na cultura.
– Não pá! Claro que não. A filosofia não é unívoca, tem patamares: o primeiro é o do espanto que acompanha o homem na sua experiência de contacto com ele próprio e com o mundo que o cerca. Quando esse espanto dá origem a questões fundamentais, entre as quais a da “cultura”, subimos mais um patamar e o terceiro atinge-se quando o homem começa a reflectir sobre as questões que levantou, na procura de respostas. Este terceiro estádio é o da pura filosofia onde esta atinge o seu estatuto ontológico. Qualquer outra forma de pensar que fique pelo caminho é uma pseudo-filosofia.
O assunto da cultura, porém, estava esgotado. O Mestre deixara de me prestar atenção e revia as imagens no visor da máquina, mas parecia contrariado. Voltou o pequeno écran para mim para que eu pudesse ver também. Observei com atenção e vi a Ponte Romana, e o leito do rio banhado numa escuridão fantasmagórica, e vi o antigo mercado e a ponte nova como nunca os tinha visto. Num relance pareceu-me em várias ocasiões ver o rosto dulcíssimo da princezinha Séqua escondendo-se com o seu amado sob os arcos da velha ponte; e pareceu-me também surpreender ref lexos metálicos que seriam seguramente emitidos pela espada de aço do cavaleiro Gilão.
De repente dei por mim sobre a Ponte Romana – que não é romana, nem árabe, nem medieval, mas um somatório de destruições e reconstruções -, temendo ouvir, do fundo dos tempos, o troar dos cascos dos cavalos das hostes cristãs e sarracenas, com espadas e sabres já desembainhados, prontos a lavar com sangue um amor sacrílego.
Tive uma reacção emocionada à vista daquelas fotografias que, segundo o seu autor, estavam longe de ser perfeitas, e, de súbito, a noção de cultura dos românticos alemães, apadrinhada pelo meu amigo António, pareceu-me de repente mais pura, certa, telúrica, eterna, do que a minha construção fria, mental e académica, de modo que encarei-o e lancei-lhe o desafio:
– Ó António, porque é que um dia destes não vamos dar uma volta pelas mais lindas cidades do Algarve a fotografar e a discutir filosofias?
O Mestre Homem Cardoso ajeitou vagarosamente a corrente da máquina sobre o ombro, olhou de novo para as luzes doiradas reflectidas nas águas sombrias, sorriu enigmático e respondeu:
– Parece-me uma excelente ideia.
(1) A narrativa vai ser desenvolvida também em homenagem a Ernest Hemingway – autor muito apreciado por mim e pelo Mestre Homem Cardoso -, onde uma jantarada de amigos em Tavira à beira do rio Séqua, se irá transformar em sessão fotográfica e conversa pseudo-filosófica.
Nota: O estilo de Hemingway caracteriza-se pela utilização intensiva de diálogos com um mínimo de recurso ao discurso indirecto.