De repente, todas as cabeças se voltam, reflexivamente, para aquela voz ousada e desafiadora, que faz submergir o povo libertador em tamanha descrença. Outra vez? E não é que o querem fazer grande, de novo?
Abro aqui um pequeno parêntesis, para pedir desculpa ao prezado leitor, pelo irresistível e injustificado anglicanismo do título, ou talvez não. O futuro di-lo-á.
Que o juízo do povo não se espante, nem se preste a respirar sob ondas de bizarra perplexidade! Tal como Midas convertia em ouro tudo em que tocava, vai ser dada, de novo, voz à patuleia, perante os fantásticos ficcionistas de varinhas de condão que se obrigam a prometer os impossíveis, porque dos possíveis ela já se fartou.
E justificadamente, porque isto de ir às urnas já não tem o mesmo glamour dos tempos de antanho, do saudoso major em que, segundo reza a lenda, o povo era ofertado com micro-ondas.
Sim, porque, sem prejuízo de saber se me é permitido falar em seu nome, atrevimento só desculpável por vivermos tempos de achismos, não me parece que o povo possa ter deixado de saudar legislativas emocionantes, em que as narrativas fantásticas se ajustavam a um clima emocional propício à promessa de oferta de pancada ao indivíduo que, maldosamente, acusava o mandante de estar de férias, olhando, como Nero, para os fogos de Pedrógão.
Isto, agora, já não tem graça nenhuma. Submergido na descrença, incapaz de conter o seu irreprimível espanto, o povo atónito, silenciado, coça, contemplativamente, o couro cabeludo diante da grande plateia que é o seu reflexo no espelho, ao ver que nunca teve outra condição, que não a de fazer número, massa, amontoado, em comicieiras multidões anónimas.
Novos e velhos atores, mediatizados pela sétima arte, irão desfilar diante daqueles que, visivelmente cansados da ineficácia do seu voto nas urnas, lá vão, de novo, num jogo invertido, ajustar-se à defesa dos ditames de seus íntegros defensores.
E o problema maior é que não há garantias de que se ultrapasse esta cultura paroquial, encerrada numa amálgama de interesses pessoais, ou de casino, esta cultura de permanente revisitação de Portugal dos Pequenitos.
Seria caso para mantermos a atualidade do espanto, vertido no questionamento de Eduardo Lourenço, o de saber “como foi possível um país tão pequeno ter tido um percurso tão extraordinário?”.
A esta perplexidade, soma-se a razão e o porquê da nossa recorrente amnésia, relativamente ao esponjoso óleo de fígado de bacalhau da escola do Estado Novo, que, em nada nos remete para a consciência da instabilidade, do declínio e do dececionante desastre da 1ª República.
Indiferente, a classe política voltará à famigerada rua dos autoelogios. Fará dela o seu espaço privilegiado, rodeando-se de um desmesurado pudor em produzir qualquer argumento que não lhe seja lisonjeiro. Criará uma espécie de espontânea e conjuntural sociedade do elogio mútuo, na hora, com a denominação mais que previsível na escolha de nomes de firmas com listas pré-aprovadas na bolsa das denominações partidárias.
Essencial a estas bolsas e à boa condução da campanha eleitoral será o marketing político, de que o seu êxito dependerá, vedando espaço a qualquer improvisação.
No seio da política espetáculo, não fará sentido qualquer problematização, logo sutilmente abafada, impondo-se os apelos emocionais dos seus discursos, de que sempre sobressairão aplausos estrondosos, servindo de confirmação e incentivo.
Do seu ofício, habitualmente focado num amontoado de palavras, para dizer coisas insignificantes, não deixará de sobressair o critério da invariância no costumeiro fascínio dos públicos. Por certo que ninguém ousará irromper por entre comícios, questionando políticos paroquiais tão famosos.
Todavia, resta saber, se neste compasso democrático do tempo, o povo foi aprimorando um sofisticado ouvido musical, propiciador da rejeição de sinfonias patéticas que lotam os shows de pasteurização artística.
Nesse primaveril dia de maio, seria desejável que o destino arrancasse o génio do povo ao lento compasso do progresso, ao adiamento sistemático de promessas a que a democracia portuguesa o tem devotado, que a classe política fosse engomada, sem arrogância, que respeitasse o povo que a elege, que fomentasse os contrafortes de uma sociedade onde fosse possível o povo viver bem, sentir-se seguro, podendo ter a liberdade e o poder de moldar a sua própria vida. Seria imperativa a edificação de uma sociedade que fosse tão boa para um professor como para um gerente de banco, para um camionista como para um médico, para um canalizador quanto para um primeiro-ministro. Mas é de temer que isso possa ser pedir demasiado, que, inclusive, possa ser diligentemente alcunhado de utópico.
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