No romance Palavra do Senhor, de Ana Bárbara Pedrosa, publicado pela Bertrand, Deus é o narrador literalmente omnisciente que nos conta a sua versão de como criou o mundo e de como a evolução descambou, deixando-O numa «perpétua pilha de nervos, anti-matéria pronta a destruir» (p. 71). Isso não impede que respeitasse Eva e tivesse sentido predilecção por Caim, justamente por O terem desafiado.
Adão não é criado à imagem de Deus e o Criador não tem longas barbas nem pena e papel onde registe a sua versão da Criação. A sua maior dor é, afinal, não poder experienciar e sentir: em cima, Deus sofre por não ser humano.
Na primeira parte do livro, o Antiquíssimo Testamento, faz-se uma paráfrase em estilo corrido da história sobejamente conhecida da criação do mundo, da perversão pelos descendentes de Caim, do reset feito com a limpeza diluviana. Porque estes episódios são sobejamente conhecidos, são passados em revista num estilo narrativo solto, livre, mordaz, com momentos de humor. Mais do que recontar, interessa aqui colocar em perspectiva o texto sagrado, questionando-o, reinterpretando-o à luz do nosso tempo.
A linguagem é despretensiosa, coloquial, como quando ao expulsar Adão e Eva do Paraíso se diz «A partir dali, não haveria almoços grátis, teriam de se fazer os dois à vida» (p. 24). Mesmo quando se invocam referências artísticas, que melhor ilustram certos episódios bíblicos recontados, não há pretensa erudição.
O que se desconhecia, e é aqui recontado, é como os dinossauros são igualmente criação divina e, afinal, o ovo surgiu primeiro que a galinha: «Desde logo, fascinei-me com a minha criação. Adorava ver aquilo: punha uma semente no solo, dava uma flor. Criava um ovo e nascia um pterossauro» (p. 17)
Ao longo do texto, é aliás curioso notar como existem diversas referências a uma linguagem científica, que ironiza e contrabalança a voz narrativa divina; fala-se em ADN, atómos, anti-matéria.
Na segunda parte, com o Novíssimo Testamento, a autora dá largas à sua criatividade e perspectiva os acontecimentos bíblicos de uma forma inovadora e até mais humana. Deus não é afinal apenas aquela entidade que tudo vigia e que apenas intervém para punir, como se leu no Velho Testamento, mas uma figura até bastante humana, capaz de se deixar perder de amores por Maria. Uma Maria aliás bastante tentadora que enlouquece de desejo até Gabriel, provando que afinal os anjos têm sexo.
Ironicamente, não existe vida além-mundo. Deus existe num vazio, pelo que desengane-se o leitor que espera amealhar indulgências para um suposto Paraíso: «Um humano, após a morte, torna-se numa sombra que é um verme. O espírito vagueia por aí, mas só é uma memória, e ainda por cima triste ao lembrar o que já foi.» (p. 113)