
doutorado em Literatura na UAlg
e Investigador
do CLEPUL
Uma Solidão Demasiado Ruidosa, de Bohumil Hrabal, é uma leitura imperativa em especial para os amantes da leitura. Publicada pela Antígona no final de 2019, esta nova edição revista conta com tradução do checo por Ludmila Dismanová e ilustrações da capa e contracapa por Mariana Malhão.
Esta é a história do velho Haňta, que, há 35 anos, tem por ofício prensar e destruir papel «num país que sabe ler e escrever há quinze gerações» (p. 9). No subsolo de Praga, ainda que a cidade nunca seja nomeada, Haňta move-se entre os ratos e as pilhas de papel velho, bilhetes usados, embalagens de gelados, folhas salpicadas de tinta, papel encharcado em sangue dos talhos, papel fotográfico, papel de escritório.
«Há trinta e cinco anos que trabalho com papel velho, e é esta a minha love story. Há trinta e cinco anos que prenso papel velho e livros, há trinta e cinco anos que me sujo de letras, a tal ponto que, com o passar do tempo, me pareço com uma das pelo menos três toneladas de enciclopédias que terei prensado.» (p. 7)

Entre essas pilhas de papel, Haňta resgata os livros que encontra. Dessa hecatombe salva textos de Kant, Hegel, Camus, Novalis e Lao-Tsé, todos eles condenados à destruição pelas autoridades. Autores cujas frases chupa como se fossem rebuçados, tornando-o menos só, e cujas ideias se imiscuem na tessitura narrativa: «sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem que ideias são minhas, saídas da minha cabeça, e quais delas li.» (p. 7)
Por entre o lixo, este homem consegue divisar beleza, e quando despejam na sua cave 600 quilos de reproduções de grandes mestres, Haňta passa a envolver todos os pacotes de papel prensado com essas reproduções. Enquanto Haňta vive diariamente o seu próprio «complexo de Sísifo, como escrevera tão bem o senhor Sartre» (p. 101), o chefe persegue-o, para que trabalhe mais rapidamente e deixe de devanear, instando-o a ser capaz de, como outros, «separar o miolo do livro das suas capas, arremessando as páginas apavoradas e eriçadas de medo para o tapete rolante, com indiferença e calma, sem imaginarem o que um livro significa» (p. 102).
Escrito de forma lírica, numa prosa torrentosa, passado nos anos subsequentes à Segunda Guerra, Uma Solidão Demasiado Ruidosa é uma poderosa alegoria sobre a indestrutibilidade da memória e da palavra, e o poder redentor da leitura em tempos bárbaros.
Bohumil Hrabal (1914-1997) é um dos maiores escritores checos do século XX. Eterno compincha de caneca erguida nas tabernas de Praga, amigo da boa cerveja e de gatos, cursou Direito, que nunca exerceu, viveu a ocupação nazi e a repressão do pós-guerra, e teve um sem-fim de ofícios, nos quais beberia a inspiração para os seus livros: ferroviário durante a guerra (Comboios Rigorosamente Vigiados, 1965, adaptado ao cinema em 1967), contra-regra, telegrafista e, claro, prensador de papel. As suas obras circularam clandestinamente após a Primavera de Praga, foram banidas e queimadas, e, a par de outros intelectuais, Bohumil Hrabal foi acossado pelo regime comunista e pelos censores do Estado. Bohumil Hrabal confessou ter vivido apenas para escrever este livro. A Antígona publicou no início deste ano Comboios Rigorosamente Vigiados (1965).