O Desassossego da Noite, de Marieke Lucas Rijneveld, publicado pela Dom Quixote, chega-nos em tradução directa do neerlandês por Patrícia Couto. Marieke Lucas Rijneveld foi, aos 29 anos, a vencedora mais jovem de sempre do Man Booker International Prize 2020. Romance de estreia de invulgar maturidade, situado na zona rural dos Países Baixos, inspirado num episódio autobiográfico (o irmão morreu num acidente rodoviário), podemos resumir rapidamente esta história com base na sinopse: «Esta é a história do desmoronar de uma família contada sem paninhos quentes por um dos seus membros: uma menina de 12 anos com uma lucidez extraordinárias.»
Quando Mathhies morre, pela altura do Natal, num acidente de patinagem, ao afundar-se em gelo demasiado fino, os irmãos Cas, Hanna e Obbe (os Três Reis Magos) procuram sobreviver à tragédia que parece afastar irrevogavelmente os pais, um casal conservador, membros da Igreja Reformada, proprietários de uma vacaria. Sem saber lidar com a perda, sobre a qual aliás não é permitido falar, os pais tornam-se incapazes de manifestar afecto entre ambos, e ficam cada vez mais desligados dos filhos.
Detentora de uma prodigiosa imaginação, Cas, a menina (então com 10 anos) que nos narra a sua história, dá por si encurralada entre o desejo de seguir o irmão para a outra margem (que no livro ganha a dupla conotação de simbolizar o lado urbano assim como o além). Para lidar com o luto, Cas veste um casaco vermelho cujo fecho corre até lhe tapar parte da cara, num instinto de protecção – na versão original do livro, a personagem chama-se Jas, justamente porque é também essa a palavra para casaco em neerlandês.
«Ninguém conhece o meu coração. Está bem escondido por baixo do meu casaco, da pele e das costelas.» (p. 57)
Fechada nesse seu casulo, Cas dá por si igualmente incapaz de libertar os intestinos (como se a prisão de ventre fosse a sua própria forma de bloquear as emoções). Ressalve-se aliás que a expressão «discomfort of evening», correspondente ao título da tradução inglesa do livro, remete para o entardecer, a altura do dia em que os úberes das vacas estão repletos de leite, levando-as a espojarem-se e a apelar a quem as possa aliviar. O mesmo acontece com Cas, que procura um grão de conforto ou carinho junto da mãe, que, no entanto, a repele.
A singularidade da narrativa reside no desassossego, a fazer jus ao título, que se cria no leitor. Numa linguagem simples, mas rica em imagens e metáforas, Cas associa o trivial e o profundo, recorrendo muito especialmente à realidade que lhe é mais familiar – a da vacaria onde vive (na vida real, a autora continua a trabalhar numa vacaria). Esta menina, com sensibilidade e imaginação a mais (leva o livro todo convicta de que vivem judeus escondidos na sua cave), pensa por camadas.
«É confuso, mas os crescidos são confusos, porque as suas cabeças funcionam como num jogo de Tetris e têm de arrumar todas as preocupações nos lugares certos. Se forem demasiadas, empilham-se e entopem tudo. Game over.» (p. 67)
Por isso as imagens no livro são sempre justapostas, na associação livre em que o seu pensamento discorre, conforme procura ainda compreender o mundo sob o filtro da religião – em casa são constantes as citações bíblicas. Para Cas, quando Mathhies morre, a morte do filho primogénito assinala a primeira de uma série de pragas – no final da segunda parte do livro, a descrição da morte das vacas, por causa da febre aftosa, não é para estômagos sensíveis. O desassossego repercute-se ainda no fascínio pela morte (repetida em pequenos animais da vacaria), na descoberta da violência (especialmente centrada no agora irmão mais velho, Obbe) e no despertar da sexualidade (há episódios quase incestuosos).