Filosofia dia-a-dia
Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.
Heraclito
Acordamos para a solidez dos dias. Ainda acariciados pela macieza dos lençóis, sentimos o frio do chão e o ar fresco na face. Lá fora, uma vez mais, o sol inaugurou a manhã, as montanhas beijam os céus e o oceano imenso estende-se para lá da linha do horizonte. Quantos exemplos de estabilidade! No entanto, embora as árvores possam viver centenas de anos, e as montanhas parecer imutáveis durante vários milénios, tudo perecerá. Para os homens e mulheres do futuro, o Oceano Atlântico talvez venha a ser o Deserto Atlântico. É apenas a escala relativa na qual o tempo geológico opera que torna este processo invisível para nós. A Terra gira em torno do seu eixo e, simultaneamente, realiza a sua órbita em redor do sol, enquanto a galáxia gravita ao seu próprio ritmo e se desloca na vastidão do espaço. A permanência, a fixidez, são truques de ilusionista em que continuamente caímos ao acreditar na realidade dos fenómenos. Nada, absolutamente nada, no nosso mundo é estável.
O filósofo Heraclito de Héfeso (535 a.C.- 475 a.C) utiliza a imagem do rio para postular a absoluta continuidade da mudança em todas as coisas: tudo está num perpétuo fluir como um rio. Não se pode penetrar duas vezes no mesmo rio, porque o rio nunca é o mesmo. Todas as coisas, mesmo as aparentemente estáveis, incessantemente se modificam num constante devir. Na tradição budista, a Impermanência é a segunda das quatro contemplações preliminares, modificadoras da atitude mental. Com grande detalhe, descrevem a destruição total do planeta através de sete sóis consecutivos. Esqueçamos as previsões desta tradição e pensemos em quantas explosões nucleares seriam necessárias para eliminar o nosso planeta. Tomemos consciência do arsenal nuclear existente e não requererá demasiado esforço imaginar que a insensatez humana pode levar a uma aniquilação global. Basta um único déspota carregar num botão, dando livre expressão à ignorância e ao ódio, e o nosso belo planeta azul extinguir-se-á. Já estivemos mais longe deste cenário.
Estaremos conscientes da transitoriedade das coisas? Em que direção caminha o mundo moderno? Tende a uma maior permanência? Ou menor? Que expectativas quanto à nossa própria vida?
Tenhamos por seguro que, ao contrário de nós, o tempo nunca descansa. Enquanto repousamos confortavelmente o nosso corpo envelhece. Novas células dão lugar às anteriores, mas este processo não é digno de total confiança. Por vezes às boas células sucedem cópias de pior qualidade. No interior do corpo, o ciclo de nascimento-morte é experimentado continuamente, e “ninguém sabe o que virá primeiro, a próxima inspiração ou a próxima vida”. No entanto, é frequente que a morte assalte alguém a meio do seu planeamento para os próximos tempos. Há uma luta constante entre o desejo compreensível de estabilidade e solidez por um lado, e a pressão cruel do fluxo ininterrupto de circunstâncias e situações, por outro. Experimente, caro leitor, tomar consciência disto. Durante o dia, ao respirar, dê-se conta de quão maravilhoso é inalar novamente após cada expiração.
Não há mal que sempre dure,
nem bem que se não acabe.
Provérbio Popular
O outro lado da moeda Impermanência é o Horizonte de Possibilidades. Quando se está numa situação difícil, talvez não seja mau recordar que esta não durará para sempre. Quando não se encontra solução para um problema, convém equacionar que algo poderá estar a escapar-nos. Possuímos um mecanismo, inerente à nossa finitude, de sistemática Elisão das Possibilidades Alternativas, fenómeno assim denominado por Mário Jorge de Carvalho. Actua como um simplificador: de todas as opções a considerar elegem-se intuitivamente algumas cuja possibilidade de apreciação se considera averiguável. É uma questão de sobrevivência. Mas entre as alternativas ainda não consideradas, pode existir uma boa solução. Quando nos encontramos naquilo que julgamos ser um beco sem saída, talvez nos faça bem recordar-nos deste mecanismo de ocultação. Existem, certamente, possibilidades que não estamos a equacionar. É preciso exercitar a mudança do ponto de vista, coisa que não é nada fácil, pois somos criaturas de hábitos. Sei, por experiência própria, que fazer o pino ajuda!
* As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia dia-a-dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro em Português e Inglês. Para mais informações contacte [email protected]