Inês Pedrosa é uma escritora ao estilo do nosso mundo, regista a homologação da nossa pós-modernidade ou modernidade líquida, tanto vale. Esta pós-modernidade, a despeito de tanto cepticismo, lá vai abatendo fronteiras e criando espaço homogéneo e tornando plausíveis todas as mestiçagens, entre o original, a cópia e a realidade virtual. É o espelho da globalização, ou um seu modo de apresentação: quanto mais globais somos maior sucesso tem a egonomia, ou seja a ilusão da personalização dos produtos consumíveis, incluindo o entretenimento literário – lemos à procura de ali nos vermos ao espelho, mesmo estilhaçados. No seu clássico ‘A Era do Vazio’, Gilles Lipovetsky fala em dessublimação, que ele designa pela integração dos conteúdos de oposição da cultura superior no quotidiano, a assimilação e a banalização das obras por uma sociedade que difunde em grande escala as mais altas realizações na sociedade do centro comercial e da modernidade líquida, a tal modernidade de todos os vínculos provisórios.
‘Desnorte’, por Inês Pedrosa, ilustrações de Gilson Lopes, Publicações Dom Quixote, 2016, é um registo de situações de dissolução e resignação, um desfile de seres frios, distanciadores, voláteis. Textos esquemáticos de alguém que domina perfeitamente a quantidade de linhas de uma crónica, uma artesã perfeita para o modelo de prosa de uma publicação de ler e deitar fora. Se alguma dúvida subsistisse sobre esta poderosa modernidade líquida, atenda-se ao que escreve a escritora logo no seu primeiro texto: “O meu coração é uma floresta cheia de nevoeiro – guarda tudo e não encontra nada. Sou uma recordadora profissional. Vivo de recordações, mesmo daquilo que ainda não fiz. E repito obcessivamente os mesmos truques. Iludo-me. Desenvolvi um erotismo futurista: deleito-me com o puro prazer dos meus sonhos”.
Estes textos dão à palavra ficção duas acepções: fingir ou dar forma. De um modo geral, é a voz feminina que predomina, ainda que omnipresente, amarga, contrastante, quase entontecida nos labirintos da memória. Não deixa de ser curioso ler o texto que se nos oferecesse na contracapa: “Uma rapariga procura a própria voz. Um homem percorre as curvas do tempo até à pré-história do amor. Um pai cira um mar de livros para que a filha volte para ele. Uma família marca encontro com os seus mortos. Uma mulher aprisionada pelo desejo de ser águia. Um casal de jovens encontra-se para se despedir da vida. Uma obsessão erótica. O maior cantor de todos os tempos aguarda numa nuvem a chegada da maior fadista de sempre”.
A autora fez bem em titular o volume com o nome do melhor texto aqui incluído: desnorte, o tal casal de jovens que se encontra para se despedir da vida. Tenho para mim que constituirá um clássico, resistirá por muitas décadas às rugas do tempo. Ele é alemão brasileiro, vive no maior desalento, ter-se-ão conhecido numa qualquer rede de contactos, marcaram encontro na Cidade da Praia, morrerão juntos, fora decidido. Ele aceitou porque queria morrer ao sol, não tem a fotografia dela, vem acicatado pelo desejo de morrer acompanhado, e já não tem dinheiro para voltar para casa. Ela surge repentinamente, traz o factor surpresa, é lisboeta mas cabo-verdiana, embevecem-se, recapitulam o que tinham escrito por mail: “Entrarei de mãos dadas contigo na morte, sem lágrimas, de olhos abertos” escrevera ela. “Eu serei o seu salvador, e você a minha luz” escrevera ele. Falam de suas vidas, do cocktail de etnias que têm no sangue, entusiasmam-se com a conversa, decidem deixar a morte para o dia seguinte. Fazem amor, por só vão morrer amanhã. É um texto monumental, inesquecível:
“Demorara muito tempo a entrar um no outro, porque sabiam que, ao acabar o dia seguinte, estariam mortos, despedaçados contra uma falésia. Queriam morrer sem o lastro da dor que costuma arrastar os seres humanos, o lastro da vida. O desajustamento que sempre haviam experimentado em relação às coordenadas geográficas da Terra facilitava-lhes a entrada nesse não-lugar que é o amor. Natércia percorreu com a boca o corpo toda da vida, gozando a sensação de ancorar, finalmente, na Terra Prometida, no lendário Cabo Verde que a mãe lhe falara. David sentia o corpo dela como o exacto negativo do seu, a primeira matéria real da sua existência. Prolongaram a combustão dos corpos como se dançassem sobre o mar, num baile de debutantes deslumbrados. ‘Encontrei em ti o norte do meu sul’, disse a boca de um deles, em nome dos dois, antes de adormecerem.
Não há noite que dure a vida inteira, a não ser que não dure – mas isso, pensá-lo-á Natércia muitos anos depois, na hora da sua morte, olhando para a filha que o alemão do Brasil lhe deixou antes de partir para longe, em busca de outra vida “.
Tal como a World Music é o maior produto de sucesso da industrialização global da música, a literatura pós-moderna é um ambientador de histórias encantadas que dão ilusão ao leitor de que pode embarcar nesta diversão do tapete voador. E daí o desnorte, um título bem acertado para os vazios da modernidade líquida que Inês Pedrosa sabe identificar.