De soslaio, Maria Aldina dirige à mãe um olhar distante que vai buscar à sua infância mais profunda. Entre as duas, o mundo dos afectos agitou-se sempre frio na turbulência dos dias.
Porém, os últimos anos amaciaram os azedumes. O silêncio da mãe calou a revolta, e do grito fez-se um mudo apaziguamento.
Alzira entrara no labirinto do tempo. Primeiro, as mãos quedaram-se repetidamente trémulas, suspensas no ar, tornando penosa a tentativa de vê-la retomar, com lento vagar, a tarefa de entrelaçar a empreita da alcofa inacabada. Uma arte que exibia com orgulho e mestria.
Depois, o olhar começou por travar-se-lhe fixo no abstrato de coisa nenhuma. E atirava palavras pontiagudas agressivamente pesadas como pedras. De vez em quando sorria. – “Vá lá saber-se de quê!” – perguntava-se a si mesma, Maria Aldina, abanando ao de leve a cabeça. Resignada. Como quem nada pode fazer.
A seu lado, Alfredo, companheiro de uma vida, escondido por detrás de uma ausência mais aparente do que desatenta, ia anotando os pequenos gestos que sinalizavam a fuga de Alzira para o mundo onde mora o esquecimento. Não raras vezes, vindos dela, chegavam-lhe como sinos fúnebres, os sons de palavras trocadas: das terras, das pessoas, das coisas, dos sítios ou dos lugares onde criou raízes e abraçou amores. O seu nome e o dos filhos. Tudo começava a morrer nela. Com ela. Inexoravelmente.
Alfredo já perdera a conta aos amigos que o precederam nestes silêncios prolongados. Sem um aceno de despedida ou um adeus de até logo. Sabe como isto vai terminar. Mas não sabe quando. Nem se ocorrerá antes dele.
Para Maria Aldina, que nunca foi de sorrisos meninos, a situação da mãe veio avivar-lhe costuras de feridas antigas. E este drama dentro de portas, torna cada vez mais difícil prolongar no tempo, o confinamento que se arrasta pesado como grilhetas amarradas aos seus pés.
São tempos de chumbo, estes. Que gritam e reclamam, em silêncio envergonhado, pela libertação dos dias pardos e prolongadamente tristes.
Alzira e Maria Aldina, são duas almas reflexas das sombras que as habitam. E que pairam no ar, se projectam nas paredes de toda a casa e da vida fora dela. E nos que nela partilham a dor e a ausência.
Alzira, fechada dentro de si, vive na dimensão de um tempo sem tempo e sem lugar. Maria Aldina, na tentativa vã de suavisar a amargura e a cinza dos dias, tenta refúgio na ilusão de um voo errante das borboletas que atraídas pelas luzes do crespúsculo, queimam as asas no frenesim efémero de tanta embriaguês. E sonâmbulas tombam de um sono feito de pesadelos.
Percebe-se então que a vida, afinal, é um breve instante no aquário do tempo. Um leve pensamento suspenso em balões coloridos por fora, mas cheios apenas de ar por dentro. Um sopro a mais e tudo explode em pedaços de nada. Na solidão dos restos.
Pedro Saraiva
Caçadores de Histórias
O texto de Pedro Saraiva convoca-nos para algumas reflexões tendo em conta o aumento da esperança média de vida das populações:
1). O papel das sociedades modernas no envelhecimento da população;
2). As doenças e a solidão na velhice e a falta de resposta das instituições e do estado;
3). Os reflexos desta problemática no ambiente interpessoal e nas relações familiares;
4). Os dilemas éticos para soluções que começam a ocupar a agenda do debate público. R.S.
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