Pão com azeite! O que eu gostava daquele pão com azeite!”, disse a neta à porta da igreja, a chorar a avó que partia.
A tristeza cobria-lhe o rosto de sombras e da alma transbordava toda a ternura do sabor que trazia da infância. Ao peito a medalha. O lugar onde quer que a avó permaneça. Colada ao seu coracão.
– “Levo-a comigo para o resto da minha vida… e como uma das melhores recordações, o pão com azeite que ela me dava quando era criança!” Confidenciava baixinho, como se rezasse.
– “Não sei se ela entendeu quando lhe contei que gostava tanto daquele pão com azeite. Havia já algum tempo que dava sinais de ausência e de já não estar ali”. E eu
– “admiro a tua sensibilidade que faz de uma fatia de pão com azeite uma iguaria dos deuses para servir à mesa das almas bonitas. Não percas nunca esse sabor das coisas simples. São elas que nos marcam a vida. Em todos os sentidos e em quase todas as circunstâncias. Há quem já tenha dado a volta ao mundo, mas não tenha dado um bom dia à mulher do pão que mora ao fundo da sua rua e que todos os dias passa à sua porta. Quem tenha por hábito frequentar os melhores restaurantes do mundo e seus arredores, mas não tenha provado uma fatia de pão quente com azeite. O que eles perdem!” – pensei eu. E ela
– “os meus avós faziam uma boa dupla. Agora fica ele sozinho entregue aos seus bonecos e às andorinhas. Os meus outros avós partiram sem que eu tivesse ainda a maturidade para perceber que isso ia acontecer e, por isso, nunca lhes disse o que sentia. Quando esta minha avó começou a ficar diferente, resolvi dizer-lhe o que precisava de ser dito”. E eu outra vez
– “olha, a melhor homenagem que podes prestar à tua avó é transmitires as memórias que guardas dela e as saudades do pão com azeite à tua filha, para ela transmitir aos filhos que hão-de vir. Assim a tua avó será uma luz permanente junto de vós”.
Notando o embaraço das palavras, adiantei
– “li uma vez que a vida se reduz aos momentos de ternura e pouco mais. De tudo o que se passa connosco, só conservamos a memória intacta de dois ou três rápidos minutos, ou a saudade dos sabores e aromas como este que contaste. Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-nos, como um pouco de água fria embacia o copo. O resto esvai-se como fumo. Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais”.
Silêncio entre os dois cortado pelo repicar dos sinos…
– “obrigada por ontem ter visitado o meu avô. Parece que estava a pressentir o instante!” – disse ela em despedida, cobrindo-se com o véu da tristeza e do silêncio. E retirou-se para dentro, no sossego acolhedor e contemplativo da igreja.
Dali a nada, nas ruas e nas casas, haviam de acender-se as luzes do Natal que já batia à porta.
Eu deixei-me ficar na ladainha do poema de David Mourão Ferreira: Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
CAÇADORES DE HISTÓRIAS
Os afetos e a saudade na hora da partida. Há momentos de dor e de tristeza que transportam, paradoxalmente, toda a beleza e amor do mundo. No caso, as lágrimas da neta no adeus de despedida da avó, com o sabor das coisas simples. P.A.
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