Em meados do século XV, o senhorio de Malatesta Novello, em Cesena, conhece um momento de extraordinário esplendor artístico e cultural, que culmina na grande obra da Biblioteca Malatestiana.
A sua fundação deve-se à vontade conjunta de Malatesta Novello, senhor de Cesena de 1433 a1465, e dos frades franciscanos que decidiram construir uma biblioteca para o uso do seu‘Studiorum’, ativo durante décadas e, para o qual, estes teriam obtido do Papa Eugénio IV permissão para uso do legado testamentário.
A intervenção de Malatesta Novello no projeto está documentada desde 1450, quando erige um esplêndido salão no interior do convento, no qual abriga a biblioteca, erguendo assim um monumento perene para si e seus familiares, mas também para toda a cidade.
A construção do edifício ficou a cargo de Matteo Nuti, natural de Fano, como pode ser lido na inscrição localizada ao lado da porta da entrada. Contudo, uma hipótese sugestiva atribui o projeto arquitetónico a Leon Battista Alberti, que na mesma altura em que a Malatestiana é construída, se encontrava em Rimini, cidade costeira próxima de Cesena, liderando a construção do Templo Malatestiano na corte de Sigismondo Malatesta, irmão de Malatesta Novello. Esta ligação fundamenta-se igualmente no facto de que Nuti fora aprendiz de Leon Alberti.
O trabalho foi concluído em 1452 e a biblioteca foi oficialmente inaugurada no dia 15 de agosto de 1454, data que é possível ler gravada na esplêndida porta de entrada em madeira, que ostenta os brasões da família Malatesta e o nome de ‘Cristoforo di San Giovanni in Persiceto’, autor da inscrição. Acima da porta, inserido no tímpano, encontramos o baixo-relevo do emblema contendo o elefante dos Malatesta, com o lema ‘Elephas indus culices non timet’ (o elefante indiano não teme os mosquitos).
Do ponto de vista arquitetónico, a Malatestiana é inspirada no modelo criado por Michelozzo para, a biblioteca de São Marco em Florença, obra encomendada por Cosimo de Medici. A sala apresenta um plano basílico divido em três naves contendo duas filas de dez colunas cada, e é iluminada por vinte e duas janelas de pequenas dimensões e por uma outra janela circular na parede dos fundos que uniformemente distribuem luz pelo espaço.
Os brasões estão presentes nos bancos de leitura e nos capitéis e o nome de Malatesta Novello surge na inscrição inserida no chão, sempre acompanhado pela expressão ‘Dedit’ (por ele dado ou doado) que renova a memória do doador. Nas naves laterais, duas filas de vinte bancos de leitura (os chamados ‘plúteos’ ou ‘plutei’) contêm os livros que são a base do acervo da Biblioteca.
Malatesta Novello integrou neste espaço o fundo bibliográfico conventual pré-existente, constituído como um todo já no século XIV, compreendendo as Sagradas Escrituras, os textos de teologia e filosofia, coleções enciclopédicas, assim como manuscritos produzidos no ‘Scriptorium’ que ele mesmo fundou. Ao longo de cerca de vinte anos (de 1446-1465), o ‘Scriptorium’ produziu 126 códices com as obras dos clássicos gregos e latinos e dos padres católicos.
Uma coleção de 119 códices doados pelo médico de Malatesta Novello, Giovanni di Marco de Rimini, completa o espólio da biblioteca. Estes incluem textos sobre medicina e ciências naturais, aos quais se juntam algumas aquisições, feitas por Malatesta, de códices gregos e hebraicos. A escolha linguística, por si só, qualifica e demonstra a ideia de biblioteca que Malatesta Novello queria realizar, ou seja, na coleção apenas entraram volumes em latim, grego e hebraico, dando assim expressão concreta ao conceito das três línguas, marca essencial na cultura da Renascença. Desta forma, o espólio da biblioteca realiza plenamente a cultura, os gostos e as paixões deste aristocrata e ‘condottiero’ do século XV, cuja personalidade era fortemente inspirada pelos cânones humanistas.
O interesse universal da biblioteca Malatestiana é reafirmado pela escolha de alocar a coleção para uso público, sob o controlo das autoridades da cidade. Assim, apesar de ter nascido como uma ‘Libraria Domini’, esta foi confiada pelo próprio Malatesta Novello ao município e destinada ao uso público, tornando assim a biblioteca Malatestiana numa das mais antigas bibliotecas públicas da Europa.
Ao município de Cesena foi confiado o cuidado e a proteção da biblioteca, ainda que a sua guarda tenha sido atribuída aos frades do convento. As duas chaves com as quais ainda hoje se abre a porta principal foram guardadas, até ao final do século XVIII, nas duas instituições como símbolo da “dupla custódia”. Atualmente as chaves são mantidas no interior da própria biblioteca.
O cuidado e o controlo exercido pelo município de Cesena ao longo dos séculos é um dos principais fatores que determinaram a extraordinária preservação da biblioteca em todos os seus elementos, permitindo-lhe sobreviver ao fim do domínio dos Malatesta, à supressão do convento franciscano na época napoleónica, à tumultuosa primeira metade do século XX e a muitos outros momentos difíceis da sua história. Resistindo ao tempo e à mudança, os 340 códices continuam ainda, e há mais de cinco séculos, no seu exato lugar, ligados aos plúteos (bancos de leitura) com as suas correntes do século XV e na sua posição original.
Atualmente, a antiga ‘Libraria’ está incorporada na moderna biblioteca da cidade, sendo desta a raiz e a alma, e preservando assim a vontade original de Malatesta Novello de doar à sua cidade uma biblioteca de cariz público.
Recentemente, a Universidade de Cambridge elaborou uma lista com as 15 bibliotecas históricas mais importantes em todo o mundo. A Malatestiana foi uma das escolhidas, por nos oferecer a ideia perfeita e intacta daquilo que eram as bibliotecas medievais naquele território tão importante para a cultura europeia.
A Malatestiana é a maior fonte de orgulho da localidade de Cesena e é um símbolo amado com excecional fidelidade por todos os seus habitantes. A inclusão da biblioteca no World Memory Register Unesco, que ocorreu em 2005, reforça a sua importância e valor, assim como a responsabilidade e o compromisso de preservar e aprimorar este património histórico e cultural, tornando-o cada vez mais acessível à comunidade em geral.
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