Mais de 200 mil menores que estiveram sob a responsabilidade da Igreja francesa foram, entre 1950 e 2020, abusados sexualmente por dois mil padres e outros membros da hierarquia católica. No total, incluindo abusos cometidos por membros do clero e por leigos, são 330 mil vítimas e 2900 a 3200 abusadores. Não estamos a falar de casos isolados, excecionais, mas de uma violação em massa de menores. De uma cultura instalada. Se não uma cultura de abuso, uma cultura de silêncio e cumplicidade. Como escreveram os autores do relatório da comissão independente que investigou, durante três anos, denúncias de maus-tratos e violações na Igreja Católica francesa, falamos de “uma indiferença profunda, total e até mesmo cruel” por parte da igreja francesa.
A minha primeira reação a estes números é a de qualquer português: o que tem a Igreja católica portuguesa de extraordinário para que não se conheçam casos por cá? Tomou as medidas necessárias para que tal não sucedesse ou as medidas necessárias para que tal continuasse escondido? Ou vivemos numa sociedade demasiado temerosa para fazer investigar, fazer perguntas e tirar os nossos bispos da paz podre em que ainda se mantêm, longe de todas as mudanças a que assistimos no mundo ocidental? Neste momento, o que tenho a fazer é um elogio à coragem que existe em França e falta por cá.
Há, do meu ponto de vista, razões profundas para que isto aconteça com tanta intensidade na Igreja Católica. A relação dos padres com a sua própria vida sexual, a repressão violenta desse instinto humano, ajudará a explicar alguns comportamentos desviantes. Para o saber, seria preciso que a própria Igreja estivesse disposta a abrir um debate interno sobre a castidade celibatária, os seus efeitos psicológicos e as suas justificações religiosas. Nem o Papa Francisco, um exemplo raro de coragem no Vaticano, está em condições de iniciar essa mudança.
Mas o essencial é mesmo a cultura de segredo e de casta, que faz a Igreja acreditar que se regula a si mesma independentemente das leis dos homens. Foi isto que alimentou a impunidade e o crime continuado. E é por causa dela que a culpa perante todas as vítimas não é apenas dos abusadores, mas de toda a instituição. Nenhuma organização é responsável pelos crimes dos que dela fazem parte, todas são responsáveis pela proteção que dão a criminosos, oferecendo-lhes a impunidade que serve de exemplo.
Não vou entrar no debate começado por esta comissão sobre uma revisão do segredo da confissão, que levou o presidente da Conferência Episcopal francesa, Eric de Moulins-Beaufort, a defender que o segredo da confissão “é mais forte do que as leis” e o porta-voz do governo, Gabriel Attal, a responder que “nada é mais forte que as leis da República”. Todo o debate sobre o sigilo é complexo, envolve outras atividades – médicos, advogados ou jornalistas – e não deve ser aligeirado ao sabor de cada indignação, por mais forte e justificada que ela seja.
Os limites da liberdade religiosa são, eles próprios difíceis – só quando envolvem religiões minoritárias costumam ser simplificados, porque a maioria não se sente afetada. Não é porque este debate não seja relevante que me furto por agora a ele. É porque estamos a pôr o carro à frente dos bois. O problema não foi o segredo da confissão, foi a sua utilização por parte da hierarquia para ter uma razão formal para fingir que não sabia o que sabia. As informações que tinha nunca impediram a Igreja de mudar um padre de paróquia, quando a coisa se tornava mais evidente. Nunca impediram que lhe chegassem queixas de fiéis e vítimas. Só a impediu de entregar os criminosos às autoridades. O segredo só existia para fora da Igreja. Para proteger a própria Igreja.
Não é que o segredo da confissão esteja em cima da lei, é a própria Igreja que se julga acima da lei. Acha que a sua lei substitui a lei do Estado. Que é ela que a aplica perante crimes comuns. Que o clero continua a ser uma casta à parte, em sociedades laicas. E que os fieis lhe pertencem.
Um padre abusador pode responder perante Deus e perante a sua Igreja. Esse é um assunto da sua consciência da estrutura onde se integra. Mas, perante as vítimas e a sociedade, é à justiça do Estado que responde. Porque aqueles de quem abusaram não abdicaram (nem podem abdicar) dos direitos de cidadania no dia em que entraram numa Igreja.
A sociedade não tem de esperar por reformas da Igreja para que os abusadores que ela protege sejam punidos. E é por isso que, para além dos abusadores, todos os que sabem dos abusos e protegem os abusadores são cúmplices do crime. Como isto se coaduna com o segredo da confissão? Isso é uma questão que a própria Igreja terá de resolver. O que o segredo da confissão não pode ser é um alibi para uma proteção institucional, estrutural e sistemática de abusos em massa. Porque isso nada tem a ver com liberdade religiosa. A sincera vergonha do Papa Francisco não chega. É preciso que ela se transforme em redenção, através de uma mudança radical de cultura e procedimentos.
Artigo de opinião exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso