Vai grande a turbulência das monções naquele mar de regresso. Formosa e acolhedora, é a ilha onde agora aqueles marinheiros vão arribar, vindos de Calecute.
De um lado ao outro, o Índico cruza-se em menos de um mês.
Para eles, é apenas mais uma etapa de uma viagem que os há-de trazer do fim do mundo. São navegadores e aventureiros dos mares do império, não raras vezes envolvidos “em perigos e guerras esforçados”. Homens de rostos fechados, pele curtida pelo sol e pelo sal, e um coração à prova de bala.
Nada que fizesse supor o estremecimento súbito que tomou conta deles soando por todo o navio como uma trovoada seca. Um frémito de emoção que lhes abanou a alma inteira perante o milagre de vida a desabrochar à sua frente na barca onde vinham de regresso a Moçambique.
“Trazíamos no chapitéu uma árvore que chamam mangueira, fruta da Índia; pela manhã arrebentou uma folha nova, na viagem o fazia em dez e doze dias, me parece gozava da Primavera dos climas por onde passava”, assim o deixou escrito o padre Jesuíta, António Gomes, testemunha do fenómeno e da transfiguração daqueles corações empedernidos numa comoção de meninos.
Os mareantes que tinham instalado a pequena árvore num vaso, aconchegando a terra e regando-a pelas manhãs, podiam ter agora a infinita alegria de presenciarem e viverem, afinal, a maior descoberta das suas viagens. Que assentava na fragilidade de uma planta a nascer, para se reproduzir e rebentar em flor e frutos e permitir mudar definitivamente a paisagem e os costumes dos homens.
O simbolismo que essa paixão pela planta da Índia suscitou naquela gente pouco dada a lirismos poéticos, reside no alcance social, económico e cultural que estava a acontecer pela primeira vez à escala global. A circulação, experimentação e troca de árvores, sementes, flores e frutos, que viajando por mares e continentes, tiveram um impacto sem precedentes nas relações comerciais, nos hábitos de consumo e na alimentação de todos os povos. E que está na origem de uma das maiores e mais prodigiosas revoluções de mundialização económica iniciada pelos descobrimentos portugueses.
Por esse tempo, o mundo dizia-se em português. A língua portuguesa tornara-se a primeira a ser falada em todos os continentes. E essa revolução, feita de espantos e aventuras, ficou eternizada no relato vivo de Fernão Mendes Pinto, um peregrino no outro lado do mundo. Ou nas crónicas do Piloto Anónimo, outro dedicado amigo dos mares. E na carta de Pero Vaz de Caminha, escrita na primeira pessoa e enviada ao rei, de terras de Vera Cruz.
O triunfo das plantas acabou, pois, por exercer inevitavelmente uma forte influência nas alterações de poder e nas estruturas económicas dos diversos estados nas mais variadas regiões do planeta, a partir do século XV. Antes disso, já os mouros, provavelmente os mais importantes agentes dessa trocas comerciais, entre a Índia, a África e a Europa, tinham trazido para o Algarve a amendoeira e a figueira, a pereira, o pessegueiro e a laranja amarga, porque a doce só veio no século XVII, da China.
A eles se fica a dever também o cultivo da cana de açúcar no Algarve, que D. Afonso III incentivou depois no morgadio de Quarteira, e mais tarde, o Infante D. Henrique, o introduziu na ilha da Madeira, com grandes resultados. Antes do Brasil, onde viria a assumir um novo paradigma da mundialização económica já numa fase de decadência do comércio das especiarias.
Este processo de circulação de novos produtos à escala global, acabou por sentar à mesa o legado gastronómico de povos tão diferentes e tão distantes, num diálogo multicultural que teima em reinventar-se todos os dias sob novas formas de fusão de sabores entre a novidade e a tradição.
Basta pensar como seria hoje a nossa alimentação se não conhecêssemos a abóbora, o amendoim, o ananás, a batata, o cacau, o feijão, o girassol, o milho, o pimento e o tomate, trazidos do Brasil!
E o tabaco, esse vício que logo se tornou num gesto fino de afirmação social, que trouxemos também do outro lado do Atlântico.
Da Ásia e África vieram a pimenta, o gengibre, o cravo, a canela, carregados na Índia e no longínquo oriente, mais o café, a malagueta, a banana, a manga, o coco, a papaia, a melancia, num vai e vem permanente que trouxemos para a Europa e daqui foi para as sete partidas do mundo.
O arroz e o chá vieram da China e dados a conhecer pelos portugueses na Europa e no mundo, incluindo o hábito pontual do chá das cinco em Inglaterra, levado para lá pela portuguesíssima Catarina de Bragança, mulher do rei Carlos II.
Para o novo continente americano, levaram os portugueses e os espanhóis, o porco, a vaca, a galinha e os patos que seguiram viagem também nos porões dos barcos para o Japão. Para Moçambique e Angola, a cebola, o alho, o coentro, o pimentão vermelho, a vinha, a cana de açúcar, o milho, o arroz e a batata.
E por ser assim, não será motivo de espanto se no outro lado do mundo, encontrar na ementa de uma qualquer cidade do Japão, uns peixinhos da horta, uns carapaus alimados ou em molho de escabeche; em Cochim, na Índia, um sarapatel alentejano, uma cabidela de pato ou uma feijoada de bacalhau em Macau, um caldo à pescador em Malaca, uns pastéis de bacalhau com mandioca em Timor, uma feijoada no Brasil, um cozido em Luanda ou uma jardineira em Maputo.
E será sempre difícil alguém adivinhar, como seria hoje a dieta alimentar dos povos, sem a mundialização do comércio e esta troca de plantas e animais. Em dois ou mais sentidos. De todos os lados e de toda a geografia.
Ainda assim, nada que diminua a importância de saber que nas ondas dessa epopeia, o português se havia afirmado como língua franca de poder e de comunicação entre os europeus e os povos das regiões costeiras do imenso império do oriente. E se, por exemplo, é verdade que em Tanegashima, no Japão, os portugueses deram a conhecer as armas de fogo – a pólvora e a espingarda – , também é um facto que lá deixaram a tipografia e o livro impresso. E no Vietname, com os hieróglifos de símbolos da grande China ao lado, acabou por se impôr o legado da escrita alfabética latina introduzida pelo trabalho espantoso dos jesuítas portugueses.
Sem esquecer que pelas plantas se conheceram ganhos e avanços significativos na medicina curativa, com a descoberta de novas drogas que Garcia de Orta, médico, reputado investigador e cientista da época, resumia assim:
“Digo que se sabe agora mais em um dia pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”.
Fontes: “A Viagem das Plantas”, Filomena Tapada e M. Bettencourt; Plantas e Conhecimentos no Mundo”, A. Margarido e Isabel Castro Henriques; outras